Por Arthur Autran*
A história do cinema brasileiro desde há muito é concebida por cineastas e historiadores como uma série de ciclos ou fases que se sucedem sem linhas de continuidade forte. Essa perspectiva marca os dois textos fundadores da historiografia do nosso cinema. No caso da Introdução ao cinema brasileiro (Viany, 1959), no que pese o esforço de Alex Viany em construir uma tradição da representação do popular ao longo da história da nossa cinematografia através de filmes como Favela dos meus amores (Humberto Mauro, 1935), Moleque Tião (José Carlos Burle, 1943) e Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955), são significativas as dificuldades de permanência dos “surtos regionais” que se estiolam em si mesmos em cidades como Recife ou Campinas, o desconhecimento sobre as relações de mercado nas diferentes tentativas de industrialização (Cinédia, Brasil Vita Filmes e Vera Cruz) de maneira que elas acabam frustradas ou ainda a impossibilidade de diretores continuarem sua carreira cinematográfica sem muitas interrupções.
Já o texto “Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966” (Gomes, 1980) tem como fundamento para a divisão das suas diferentes “épocas” a irrupção de alguma crise na produção que coloca fim a determinado período (Bernardet, 1995, p. 51). No nível da construção do texto, isso resulta no encapsulamento das “épocas” de maneira que cada uma pouco se relaciona com as outras – e nesse sentido é significativo que Paulo Emílio Salles Gomes reúna na mesma “época” a Vera Cruz e o Cinema Novo, indicando para o fato de que o crítico acreditava haver fortes relações entre esses dois momentos da produção.
O cineasta Eduardo Escorel, em texto no qual reflete criticamente sobre os impasses da “retomada” da produção ocorrida a partir da segunda metade dos anos 1990, após a longa agonia da Embrafilme nos anos 1980 e a política de terra arrasada do governo Fernando Collor de Mello, lembra que o cinema brasileiro seria marcado pelos “ciclos”.
O que os historiadores chamam de “ciclos” nada mais é do que o intervalo de tempo, em geral relativamente curto, entre as grandes expectativas e as crises que têm pontuado a história do cinema brasileiro. É um eterno recomeçar que viveu um dos momentos de expectativas mais positivas, posteriormente frustradas, nos anos 70, e que estaria então, ainda uma vez, vencendo uma doença terminal. A reincidência desse processo deveria servir como um sinal de alerta. A lição da história indica que a euforia pode ser passageira. Afinal, as crises parecem ser um traço definidor do nosso caráter subdesenvolvido (Escorel, 2005, p. 14).
Ou seja, na concepção de Eduardo Escorel, como na de outros cineastas, o cinema brasileiro é algo descontínuo ou, pelo menos, que possui grande dificuldade em manter linhas de continuidade de qualquer espécie – modo de produção, expressão estética, relação com o público, expressão cultural, atividade industrial etc.
Historiadores e cineastas apresentam essa concepção de descontinuidade da história do cinema brasileiro em decorrência da dificuldade em se manter a produção de longas-metragens em níveis quantitativos expressivos e da recorrente falta de acesso do produto ao mercado. Significativo desse quadro geral é o fato de que o cinema brasileiro nunca conseguiu se industrializar efetivamente.
No que pese tal situação, se de fato a produção de longas e sua relação com o mercado é descontínua e problemática, o pensamento sobre a indústria cinematográfica brasileira apresenta notável continuidade histórica. Em trabalho anterior, defendi mesmo a hipótese de que até o fechamento da Embrafilme em 1990 – em um dos primeiros atos do presidente
Fernando Collor de Mello – o pensamento industrial cumpriu sobretudo a função de alcançar e manter a unidade ideológica da corporação cinematográfica, pois quase nunca se colocou em dúvida a importância da industrialização. Acima das diferenças, a corporação encontrava-se unificada pela crença no papel fundamental da indústria, tornando-se um dos componentes ideológicos essenciais na cristalização da ideia e do discurso sobre o que é e o que deveria ser o cinema brasileiro.
Efetivamente o pensamento industrial foi imposto por determinados setores da corporação ao seu conjunto em um processo lento, porém contínuo, que se estendeu da década de 1920 até a de 1980, determinando a referida unificação. Se em um primeiro momento o papel de vanguarda coube a Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, posteriormente poder-se-ia relacionar entre outros destacados ideólogos Humberto Mauro, Edgard Roquette-Pinto, Moacyr Fenelon, Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos, B. J. Duarte, Cavalheiro Lima, Mario Civelli, Flávio Tambellini, Paulo Emílio Salles Gomes, Gustavo Dahl, Carlos Diegues, Glauber Rocha e Luiz Carlos Barreto (Autran, 2004, pp. 234-5).
Neste texto proponho verificar se atualmente o pensamento industrial da corporação cinematográfica mantém vínculos com o ideário anterior a 1990. Haveria o impacto do fechamento da Embrafilme representado um elemento de ruptura no nível das ideias? Ou elas continuam as mesmas? Ou ainda, apresentam mudanças parciais diante do contexto da globalização?
A distribuição: onde começa o inferno
O mercado cinematográfico não é algo natural e nem se constituiu ao acaso: ele foi conformado como um produto da indústria. Neste sentido, trata-se de um sistema estruturado tomando-se por base interesses das majors (Creton, 1997, p. 20). Se até a I Guerra Mundial produtores franceses, italianos, dinamarqueses e norte-americanos disputavam o mercado internacional, com o conflito, estes últimos tomam conta do
negócio cinematográfico. Segundo André Gatti:
As grandes produtoras-distribuidoras buscaram a internacionalização e a penetração, em larga escala, nos mercados externos para financiar suas atividades produtivas e aumentar seus lucros, diminuindo os riscos e eliminando a concorrência. Com a finalidade de buscar uma inserção econômica global, as produtoras-distribuidoras criaram empresas especializadas em exportar filmes (Gatti, 2007, p. 24).
No caso do Brasil, o que ocorreu foi a ação das distribuidoras norte-americanas em associação com o exibidor brasileiro, de maneira a tornar amplamente predominante o produto importado e resultando no alijamento do produto nacional do mercado ainda na década de 1910. Dentre vários exemplos de como o mercado brasileiro foi moldado pela indústria, para além da imposição de determinados tipos de produtos, pode-se mencionar a criação da “linha de exibição” – estratégia de circulação do filme pela qual ele estreava em uma sala com ingresso mais caro e daí passava para as salas mais baratas – bem como de modernas estratégias de marketing para a divulgação das fitas (Gatti, 2007, pp. 54-5).
Nos anos 1950, especialmente em decorrência da experiência da Vera Cruz, fica claro que para além de grandes capitais, estúdios, equipamentos de ponta, técnicos de primeira linha e artistas talentosos, fazia-se necessário buscar articular melhor a produção com a distribuição, posto que este último setor encontrava-se dominado pelo capital estrangeiro e constitui-se no elo central que permite o acesso do filme ao mercado. Foram duas as principais respostas à questão da distribuição: a formação de uma distribuidora única de filmes brasileiros ou a associação com as distribuidoras de filmes estrangeiros.
Ainda no I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, realizado no Rio de Janeiro em 1952, o crítico e cineasta Alex Viany apresenta a tese intitulada “Distribuidora única para os filmes brasileiros”. Em texto publicado em 1954, o mesmo Viany afirma que a distribuição é um “problema fundamental” e defende a criação da distribuidora única de filmes brasileiros financiada pelos produtores e com a fiscalização do Estado. Na mesma época, o crítico ataca o fato de a Vera Cruz entregar a distribuição dos seus filmes para empresas estrangeiras.
Em 1961, surge o projeto assinado pelo cineasta César Mêmolo, pelo exibidor José Borba Vita e pelos críticos Almeida Salles e Rubem Biáfora, de constituição de uma distribuidora única para os filmes brasileiros, bancada pelo estado de São Paulo, ou seja, uma distribuidora estatal. Trata-se do prenúncio do que foi colocado em prática pela Embrafilme que, por meio de um órgão estatal, centralizava a distribuição da maior parte dos filmes brasileiros, de maneira a torná-los mais fortes no mercado.
De outro lado, havia aqueles que acreditavam na possibilidade de induzir as distribuidoras estrangeiras a trabalhar com o filme brasileiro. O Geicine (Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica), órgão governamental que tinha à sua frente o crítico, produtor e diretor Flávio Tambellini, apresentou, em 1961, proposta na qual se previa a obrigatoriedade de toda distribuidora instalada no Brasil operar com, pelo menos, um filme nacional para cada dez estrangeiros, bem como facultar ao distribuidor estrangeiro produzir ou coproduzir filmes no Brasil por meio da utilização de até 1/3 do imposto de consumo devido.
Buscava-se assim formar um fundo de capitais para a produção, e as fitas daí resultantes teriam idealmente possibilidades no mercado em virtude do interesse dos distribuidores – os quais participariam da produção e deveriam cumprir a legislação. Essas propostas, entretanto, nunca foram colocadas em prática. Quando muito, o que se conseguiu, em 1962, foi que as distribuidoras estrangeiras tivessem a possibilidade legal de investir na produção 40% do imposto sobre a sua remessa de lucro. No entanto, houve pouco interesse por tal possibilidade até 1966, quando, por conta da criação do INC (Instituto Nacional de Cinema), altera-se a lei, destinando a esse órgão os montantes que não fossem utilizados pelas empresas. Fica claro que somente diante da inevitabilidade da utilização de recursos financeiros na produção, as distribuidoras estrangeiras passaram a investir na coprodução de filmes brasileiros.
Foi o primeiro viés que se impôs historicamente no cinema brasileiro, em especial a partir de 1975, quando a distribuidora da Embrafilme adquire porte significativo – processo que ocorre no bojo de grandes mudanças na política cinematográfica estatal. É neste momento que o grupo egresso ou ligado ao Cinema Novo adquire grande poder na empresa, fato que pode ser constatado pelas indicações de Roberto Farias, para dirigir a Embrafilme, e
de Gustavo Dahl, para ficar à frente do setor de distribuição. Em um texto clássico do pensamento industrial, Gustavo Dahl defende a ação da Embrafilme no campo da distribuição, por possibilitar que a produção ocupasse o mercado. Isso seria fundamental, pois segundo o cineasta:
Para que o país tenha um cinema que fale a sua língua é indispensável que ele conheça o terreno aonde essa linguagem vai se exercitar. Esse terreno é realmente o seu mercado. Nesse sentido explícito, é válido dizer que “mercado é cultura”, ou seja, que o mercado cinematográfico brasileiro é, objetivamente, a forma mais simples da cultura cinematográfica brasileira (Dahl, 1977, p. 127).
No entanto, a crise que solapou o cinema brasileiro nos anos 1980 atingiu evidentemente a Embrafilme e sua distribuidora. Conforme mencionei, em 1990 a empresa foi extinta, mas já então ela havia deixado de cumprir um papel efetivo de apoio ao cinema nacional.
Após o advento da Lei do Audiovisual, em 1993, e do subseqüente aumento da produção de longas-metragens, a corporação voltou a se defrontar com a questão do mercado, em especial no que tange à distribuição. Em depoimento colhido em 1999, a diretora Eliane Caffé entende que a questão da distribuição e da exibição é central para o cinema brasileiro. Seu filme Kenoma (1998) – distribuído pela Riofilme – fora lançado apenas com três cópias.
É uma loucura! É R$ 1,7 milhão investido num filme; eu passo três, quatro anos trabalhando, e o filme é lançado com três cópias num território enorme como o do Brasil. É quase como enterrá-lo num cemitério! E isso é uma contradição (Nagib, 2002, p. 136).
Em depoimento também colhido em 1999, Lírio Ferreira é outro cineasta que aponta a distribuição como um “problema crônico” do cinema brasileiro e afirma que a Riofilme “é a única possibilidade clara de distribuição de filmes nacionais” (Nagib, 2002, p. 141).
A menção à Riofilme, nesses e em muitos outros depoimentos e entrevistas de cineastas, não é casual. Essa empresa pública municipal do Rio de Janeiro foi criada em 1991 em plena crise da produção, constituindo-se no instrumento fundamental para a distribuição do filme nacional naquele momento. André Gatti informa que, dos cerca de 170 filmes brasileiros lançados comercialmente no período de 1992 a 2000, a Riofilme foi a distribuidora de 98 títulos, ou seja, mais de 50% do total (Gatti, 2003, p. 603).
Parece bem evidente que a Riofilme foi baseada na experiência da distribuidora da Embrafilme – e neste sentido sua criação envolveu não apenas cineastas como Nelson Pereira dos Santos, mas ainda, ex-funcionários do antigo órgão federal. Ou seja, pretendia-se reconstituir a distribuidora única para o produto nacional tendo por base o aparato estatal. No entanto, as mudanças na política carioca, o grande leque de atividades da Riofilme – produção de longas e curtas, distribuição propriamente dita, atuação no setor de exibição etc. – e a falta de recursos financeiros e de pessoal para lançar todas as fitas que compunham a sua carteira, levaram a empresa a ter atuação bastante tímida no mercado.
Finalmente, não se deve esquecer que a década de 1990 foi marcada por mudanças na distribuição cinematográfica, que passou a se concentrar cada vez mais em um número restrito de produções, lançadas na maior quantidade possível de salas e com grande investimento de marketing. A Riofilme absolutamente não se enquadrava nesse tipo de trabalho com os filmes.
Como observa o pesquisador André Gatti, até mesmo no campo das produções brasileiras a Riofilme tem um papel modesto quando se leva em conta os maiores sucessos de público. Dos vinte filmes brasileiros de maior bilheteria entre 1995 e 2000, a Riofilme foi responsável pela distribuição de apenas três títulos e, mesmo assim, em regime de codistribuição com outras empresas (Gatti, 2003, p. 610).
Em decorrência desse quadro, há o reaparecimento da proposta de associação com os distribuidores estrangeiros. Na verdade, a Lei do Audiovisual, via o seu artigo terceiro, permite que as distribuidoras invistam até 70% do imposto devido sobre a sua remessa de lucros na produção de filmes brasileiros.
Mas ainda há certa desconfiança da corporação em relação às distribuidoras estrangeiras. A possibilidade de ter um lançamento alavancado pelo know-how e pelos recursos dessas empresas não é vista de maneira totalmente positiva. A produtora Nora Goulart, por exemplo, entende que as distribuidoras já possuem um esquema “padronizado” para lançar os filmes brasileiros copiados dos filmes norte-americanos, de maneira que pouco se dispõem a discutir as especificidades da fita nacional. Mas isso não é consenso.
Já a produtora Rita Buzzar possui uma perspectiva positiva da ação do distribuidor estrangeiro. No seu caso específico, ela afirma que, além dos recursos via artigo terceiro da Lei do Audiovisual, o trabalho com o distribuidor permite o acesso a uma larga e constante experiência de mercado, pois uma distribuidora lança vários filmes por ano, permitindo-lhe grande conhecimento do público, de estratégias de lançamento etc.
É possível constatar que as distribuidoras estrangeiras incentivadas pela Lei do Audiovisual têm alterado a sua postura tradicional de falta de relação com a produção brasileira. De fato, em graus variados de uma empresa para outra, têm coproduzido e distribuído filmes brasileiros, e são um instrumento para que tenham bom desempenho no mercado.
*Trecho do artigo de Arthur Autran no livro “Cinema e Mercado”, volume III da coleção “Indústria Cinematográfica e Audiovisual Brasileira”, uma coedição do Instituto Iniciativa Cultural e Escrituras Editora.