Por Edna dos Santos-Duisenberg*
A crise econômica que começamos a vivenciar em 2008, sentindo seu agravamento em 2009, é resultado da exacerbada especulação financeira, falhas sistêmicas, ausência de regulamentação e, sobretudo, falta de valores éticos que levaram ao quase colapso do sistema financeiro internacional.
Sem dúvida, esta situação nos deixou em estado de perplexidade diante de sua gravidade e da rapidez pela qual a crise se alastrou contaminando não só as economias dos países mais avançados, mas também afetando os países mais vulneráveis do mundo em desenvolvimento. Neste quadro alarmante, o panorama deste quase final da primeira década do século XXI parece extremamente crítico, caracterizado pela ausência de crença ideológica nas virtudes do sistema capitalista e das regras de funcionamento da economia
de mercado. Como consequência, os desequilíbrios continuam a se agravar, e nos deparamos com a deterioração do nosso padrão de vida, com a escalada do desemprego, com tensões sociais e, além do mais, com a degradação do nosso ecossistema. Diante deste cenário recessivo e sombrio da economia mundial, precisamos refletir e encontrar alternativas viáveis para remediar esta caótica crise multifacetada.
A turbulência financeira que começou com a erupção da crise de liquidez e crédito que alimentava o sistema de habitação nos Estados Unidos, provocou uma drástica desestabilização econômica, causando uma forte recessão nos países industrializados e desacelerando as taxas de crescimento nos países em desenvolvimento. Neste clima de instabilidade e incerteza sobre os rumos que as políticas monetárias e financeiras dos Estados Unidos e da Europa irão tomar a curto e longo prazo, a comunidade internacional e, principalmente, os líderes dos países emergentes, têm questionado cada vez mais o fim da era do sistema de Bretton Woods, dado as falhas do esquema que têm causado assimetrias cada vez mais contrastantes entre países credores e devedores, ou seja, ricos e pobres.
Neste momento de grande fragilidade do sistema financeiro internacional e de transformação do mundo globalizado, há sinais perceptíveis de uma mudança de paradigma. Os modelos econômicos neoliberais do “laissez-faire” deixaram a desejar, e não conseguiram resolver os desequilíbrios que continuam afetando a qualidade de vida da sociedade contemporânea. Apesar da prosperidade que prevaleceu nas últimas duas décadas, caracterizada por altas taxas de crescimento inclusive nos países mais pobres, as estratégias adotadas não foram suficientes para assegurar bem estar e padrões de vida decentes para a maioria dos indivíduos dos países em desenvolvimento. Ficou evidenciada a inabilidade do Fundo Monetário Internacional em prever e prevenir a crise e, por outro lado, temos flagrado os impasses no sistema multilateral de comércio que entravam as negociações da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio. Estas deveriam ter sido concluídas em 2005 mas continuam bloqueadas. É preciso repensar as regras do jogo da economia internacional. O grande desafio é promover um tipo de desenvolvimento que seja, ao mesmo tempo, sustentável e inclusivo.
Como os modelos econômicos não funcionam isoladamente, chegou a hora de se ir além da economia na busca de um enfoque mais holístico de desenvolvimento, que leve em conta as diferenças e as identidades culturais específicas a cada país, suas aspirações econômicas, suas disparidades sociais e as desvantagens tecnológicas dos países em desenvolvimento. As estratégias de desenvolvimento que estão sendo atualmente implementadas precisam ser revistas, afim de que possam captar as significativas mudanças culturais e tecnológicas ora em curso na sociedade. O mundo precisa adaptar-se a esta nova realidade, e incluir no pensamento dominante sobre os teorias de desenvolvimento econômico, a interface entre a economia, a cultura e a tecnologia.
Neste início de século nota-se também certas megatendências que têm e continuarão a ter um grande impacto no funcionamento de nossa sociedade. Encabeçando a lista, temos a emergência da China como grande potencia econômica, o que é um fato incontestável, tendo uma taxa média anual de crescimento econômico superior a 8% durante quase 30 anos consecutivos. Em seguida, temos o avanço da conectividade e o surgimento da multimídia, juntamente com o desenvolvimento do comércio eletrônico e novas práticas de negócios que estão modificando o mecanismo das operações comerciais no nosso dia a dia.
Outra constatação é o fato de que a estrutura econômica hoje em dia está cada vez mais voltada para o setor de serviços, e uma das consequências diretas é o fenômeno do “outsorcing”, ou seja, o deslocamento de empregos dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento dado o valor mais baixo dos salários e encargos sociais. Uma outra tendência que talvez ainda não tenha sido muito perceptível no Brasil é o aumento significativo do comércio sul–sul, que na Unctad foi batizado da “nova interdependência global”.
O comércio sul–sul, ou seja, as transações entre os países em desenvolvimento, tiveram um crescimento acentuado nos últimos 20 anos. Neste cenário em que os chamados países emergentes passam a ter um papel cada vez mais presente na dinâmica da economia mundial, os atualmente designados BRICs – Brasil, Rússia, Índia e China, galgaram um passo importante em 2009 ao serem reconhecidos como importantes interlocutores pelo grupo dos países poderosos, o G-8, para um diálogo de concentração em torno da crise financeira. É com base nestas considerações que o debate sobre a chamada “ economia criativa” – que analisa as interações entre a economia, a cultura e a tecnologia – passou a se destacar na agenda político-econômica internacional.
Além do mais, a globalização e a conectividade são realidades que trouxeram mudanças profundas no estilo de vida da sociedade no mundo inteiro. Isso tem alterado o padrão geral de produção, consumo e comércio de bens e serviços culturais em um mundo cada vez mais repleto de imagens, sons, textos e símbolos. Sentimos hoje a necessidade de entender melhor as complexas interações entre os aspectos econômicos, culturais, tecnológicos e sociais que estão atualmente dando novos rumos à economia mundial, transformando o modo de vida das pessoas no mundo contemporâneo. Nesta fase de mutação, a criatividade, o conhecimento e o acesso à informação, estão rapidamente se convertendo em meios poderosos para estimular políticas de desenvolvimento.
Nesse contexto, a relação entre a criatividade, a cultura, a economia e a tecnologia, manifesta-se na habilidade de transformar ideias em produtos ou serviços criativos dotados de valor cultural e econômico, e, assim, criar e distribuir capital intelectual. Isso é o que a chamada economia criativa já começou a fazer como um componente essencial do crescimento econômico, do emprego, do comércio, da inovação e da coesão social nas economias mais avançadas. Portanto, a economia criativa também pode ser uma opção viável para acelerar crescimento socioeconômico nos países emergentes. Segundo a definição da Unctad, a economia criativa tem o potencial de gerar renda, empregos e receitas de exportação ao mesmo tempo em que promove inclusão social, diversidade cultural e desenvolvimento humano.
*Trecho do artigo de Edna dos Santos-Duisenberg no livro “Cinema e Economia Política”, volume II da coleção “Indústria Cinematográfica e Audiovisual Brasileira”, uma coedição do Instituto Iniciativa Cultural e Escrituras Editora.
FOTO: Cena do filme “Cinema, Aspirinas e Urubus”.