Por Gustavo Dahl*
Releve o prezado leitor o fato de o escrito a seguir não constituir um prefácio, no sentido clássico do termo. Os anos de estrada teimando em ser um homem de ação me fizeram perder a embocadura metodológica. O generoso, talvez audacioso, convite para prefaciar um texto tão abrangente e rigoroso não deve ter levado isso em conta. Menos radical que Glauber Rocha, quando a plenos pulmões anunciava não ter compromisso com a coerência, um longo trajeto na área, saturado de vontade de espírito público, permite a auto-indulgência de só produzir intelectualmente exercitando uma irresponsável e plena liberdade. Na forma e no conteúdo… E a propósito do cinema digital, lembrar do cinema.
As razões que fazem com que um autodidata generalista, tecnofóbico e ciberanalfabeto se disponha a dar seu testemunho a respeito de um livro sobre cinema digital, não devem ser muito distantes daquelas que induziram um jovem estudante de administração de empresas na séria e conceituada Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, a criar e animar dentro dela um cineclube, no final dos anos setenta. Refiro-me, é evidente, a Luis Gonzaga Assis de Luca. “A Hora do Cinema Digital”, como diz seu subtítulo Democratização e Globalização do Audiovisual vai muito além da limitação de campo inicial.
O cinema digital, amplamente contemplado pela atenção do autor, tanto em seu aspecto técnico quanto industrial, termina desencadeando uma reflexão ambiciosa e abrangente do ponto de vista socioeconômico e histórico sobre o cinema em geral, em todo o mundo. Inclusive o cinema brasileiro. Sobre ele, o volume de experiências e informações que Gonzaga viveu e acumulou lhe dá um ponto de observação único. Seu descompromisso partidário mas não político – que Deus nos livre das convicções, que segundo Nietzsche prejudicam mais a verdade do que a própria mentira – vem aliado ao gosto da dialética. E da isenção, que faz evocar o principio de Niels Bohr, o fundador da física quântica, lá pelos anos 20, ao afirmar que um fenômeno só era entendido quando se compreendia a estrutura de seu contrário. Nesta sua Suma Teológica profana e brasileira, resumo de uma vida, Gonzaga renova e enriquece o debate global com a virtude que lhe é mais peculiar, o sólido gosto da concretude. Sim, se existir, a verdade é concreta.
Para começar, voltemos ao começo. O cinema, esta invenção do final do século XIX, la Belle Époque, teve ao longo do século XX, uma incrível capacidade de romper paradigmas (por exemplo, entretenimento ou cultura?) e fazer que alguns ex-cineclubistas se transformassem em grandes quadros do cinema brasileiro e do cinema no Brasil. Gonzaga ao evocar o conceito de democratização no subtítulo de “A Hora e Vez do Cinema Digital”, fornece a primeira pista para a compreensão do fenômeno. Ainda hoje há dúvidas se a invenção do cinema deve ser comemorada no dia em que os irmãos Lumiére projetaram seus primeiros filmes ou então na data em que esta projeção se tornou um espetáculo comercial, pouco depois, no famoso Salon Indien, Boulevard des Capucines, bem perto do Théatre de l’Opéra, no centro de Paris.
Cinema é um filme projetado para um público. E por sua vez o conceito de público tem a ver com a origem da democracia demos, o povo e kratos, governar, em grego e com república , res, coisa e publicum, do povo, em latim. Ao longo dos séculos, embora Shakespeare tivesse um público popular e Mozart alimentasse de obras primas a ópera ligeira de Viena, as artes cênicas, das quais o cinema descende, tiveram uma audiência limitada pelas próprias exigências espaciais do palco e da platéia, privilegiando a aristocracia. A possibilidade de replicar a cena original através de seu registro e reprodução rompeu esta barreira e ampliou infinitamente seu acesso. Democratizou o imaginário, o simbólico.
A fotografia já o tinha feito, por exemplo, reproduzindo em massa os ícones eróticos da segunda metade do século XIX, cantoras de opereta e dançarinas do teatro de variedades, que de boa vontade se deixavam cortejar, alcançáveis para uns, inalcançáveis para a plebe rude. Da mesma forma que numa aldeia indígena se reparte para todos a carne da caça, os belos rostos, os braços roliços e decotes generosos reproduzidos alimentavam o desejo e a alegria de viver da massa. Se a religião repartia o espírito, os cartões postais com figuras femininas repartiam a representação da carne. A contemplação das cortesãs míticas não era mais um privilégio, uma exclusividade das classes abastadas. Qualquer semelhança com as deusas de Hollywood, de Theda Bara a Ava Gardner, de Greta Garbo a Grace Kelly, de Jean Harlow a Marilyn Monroe, não é mera coincidência. É a democratização da beleza e sobretudo do desejo. É o cinema. Ele inaugura a sociedade da cultura de massa, não é pouco.
Mas qual é o tipo de governo republicano e democrático que o cinema estava dando ao povo? A capacidade de construir evocações e narrativas com imagens, isto é, o sonho, acompanha os homens e também alguns animais, como os cachorros, desde bem antes que se tornasse possível o registro das imagens em movimento. O cinema facultou ao homem a construção de um sucedâneo de seu imaginário num código semelhante ao que seu cérebro exercita enquanto ele dorme. Mais ou menos como o primata que rompeu com a Natureza quando prolongou seu braço com uma vara ou tornou-o mais forte com uma pedra que rompia a casca dentro da qual se escondia a semente que o nutriria. E tornou-se humano. O cinema é assim, permite passear entre o estado da arte da tecnologia e a fundação da Humanidade, como em 2001, Epopéia no Espaço, de Stanley Kubrick. A possibilidade de sonhar o sonho do outro que o cinema dá é uma democratização do imaginário, que por ele se torna uma experiência coletiva.
Aqui talvez se encontre a grandeza maior do cinema. Na mais remota Antiguidade o acesso à divindade era exclusividade dos reis, que além de sê-lo eram também o supremo sacerdote, como na Grécia pré-ateniense ou na civilização egípcia, da qual ela é sucessora. O altar estava dentro do palácio real, onde o rei de vez em quando conversava com o indizível. A organização das cidades em torno do palácio terminou determinando que o altar saísse dele e fossem construídos templos, onde o culto se tornava acessível a todos os fiéis. À população em geral, ao público. Não é por acaso que as grandes salas de cinema, na sua época de ouro, que vai dos anos vinte aos cinqüenta, sempre do século passado, terminavam sendo monumentais como templos e assim eram chamados. Templos da imagem onde o altar era a tela, em que se via a projeção da luz capturada pelos sais de prata depositados na película, despertando possessões e adoração. Química ou alquimia? E as figuras dos semideuses hollywoodianos tinham as dimensões colossais de Hércules em Rhodes ou de Ramsés II, em Abu Simbel. Na primeira metade do século XX, o Olimpo moderno ficou em Hollywood (bosque feliz) e constituiu uma mitologia que quem viveu, viu. A freqüentação das cinematecas e a garimpagem em outros suportes, como o DVD ou plataformas como a internet, pode ser um fio condutor neste labirinto em que se entra como curioso e se sai como fan…ático. Fazendo a vida maior que a vida, tendo acesso à sua dimensão mítica, superando a barreira do espaço-tempo, podendo ser herói ou assassino. O cinema digital pode ter padrões técnicos exigentíssimos para fazer com que o produto hollywoodiano mantenha o padrão de qualidade a que faz jus o mega-investimento na produção e lançamento. Mas a tendência ao barateamento de todas as tecnologias virá a gerar outro tipo de público, um outro modelo de negócios. E Gonzaga o explicita muito claramente ao evocar a possibilidade de uma gradualização dos padrões técnicos. Isto é política da imagem em movimento, seu consumo e difusão.
No início do cinema foi possível mandar fazer o registro de países distantes como a China ou de primitivas populações africanas ou amazônicas, mas sobretudo fazer com que estas imagens pudessem viajar, se deslocar de um país para outro. É como por ocasião da invenção da imprensa, quando as universidades européias trocando os pergaminhos pelos livros transportáveis, disseminaram o conhecimento e toda a sua história, graças à mobilidade. Embora a fotografia, da qual o cinema é evolução e conseqüência, tivesse proporcionado os primeiros registros do real, ainda imóveis, é só a partir do cinema que o mundo conheceu o mundo. Isto é, deu-se início à globalização. A primeira rede de consumo das imagens em movimento constituiu a segunda economia de rede mundial, logo depois daquela das ferrovias e profundamente integrada com elas.
É inimaginável hoje, quando impulsos e sinais atravessam o planeta em tempo real, simultâneo, pensar que esta economia de redes se fazia de Shangai a Araraquara, passando pela minúscula ilha de Malta, isolada no meio do Mediterrâneo, com um suporte físico de películas, armazenado em nove ou mais latas, que pesavam dezenas de quilos. Mas mudando o que deve ser mudado, seu alcance era estruturalmente o mesmo que aquele atingido algum tempo depois pela radiodifusão ou pelas telecomunicações, com suas torres, satélites ou fibras óticas. Tinha razão Fernand Braudel ao dizer que o tempo mínimo para considerar um ciclo histórico são oitenta anos. Como no paradoxo pré-socrático, não passam hoje pelo rio as mesmas águas de antanho, mas o leito permanece o mesmo. O moderno é eterno.
A essência do fenômeno cinematográfico é a disposição da platéia. Esportes se vêm em arena, artes cênicas em teatro com palco, shows de rock de pé em megaespaços onde se possa dançar. A sala de cinema é um retângulo com filas de cadeiras paralelas em que se acomodam espectadores com uma tela na frente e um projetor atrás. Outro dia uma jovem relatou-me que com um grupo de jovens amigos queriam ver um filme em DVD em casa, com um projetor de vídeo doméstico. Como ela fosse pequena para a turma, improvisaram uma tela no quintal, dispuseram as cadeiras disponíveis em fileiras e na escuridão estrelada da noite em Santa Teresa, aprazível recanto do Rio de Janeiro, foram ao cinema.
Experiência completamente diversa daquela do home theater, em que a privacidade garantida pelo espaço doméstico retira do espetáculo seu caráter coletivo. E seu rito. A evolução tecnológica já possibilita o acesso a imagens em movimento através de vários aparelhos e circunstancias. Antes do boom telefonístico portátil foi colocado à venda um mini-aparelho de televisão à prova d’água que permitia ver a programação dentro do chuveiro. Era a pré-história da portabilidade. Celulares, players, monitores, note-books, palmtops, play stations já fazem com que o consumo de imagens possa ser feito literalmente em qualquer lugar do planeta, por remoto e inóspito que seja. São três bilhões de telas no mundo e já existe um movimento chamado TOT, sigla de “the other three” pensando no momento em que o consumo de dados e imagens será tão universal quanto o consumo de água potável. Já existem óculos especiais que são receptores de sinais e a perspectiva de implantação de chips no corpo humano, que fará de nós Frankensteins cibernéticos, está em curso. A movimentação de membros artificiais, perna e braço, através de circuitos ligados diretamente no cérebro, se encontra em fase de provas e faz com que os marca-passos dos cardiopatas se assemelhem a lanternas de pilha ou baterias de automóveis. Ou seja, a introjeção literal, anatômica, fisiológica, de dispositivos de recepção de imagens, já se dá. O consumo da imagem em movimento está em mutação. Como nos apercebemos a cada momento, o futuro já era.
Mas o cinema é outra coisa. É um fenômeno gregário, não por acaso mais freqüente entre os quatorze e vinte e quatro anos, quando o ingresso no mundo é mais seguro se feito em bandos, que pelo menos dão a sensação de maior proteção dos predadores, os adultos. E também na terceira idade, em que a fatalidade biológica da solidão induz ao convívio. Há uma reflexão do grande poeta inglês T. S. Elliot, que afirma que a televisão é aquele meio em que todos riem da mesma piada ao mesmo tempo sentindo-se, porém, profundamente isolados. Não é o nosso caso. Rir ou chorar em companhia, viajar junto na adrenalina, é bem melhor. Contamina. O consumo individual e doméstico de bebidas alcoólicas não acabou até hoje com o espaço milenar das tavernas. Uma das maravilhas do cinema é nos fazer sair de casa, repositório da rotina e dos pequenos dramas quotidianos. Às vezes, de insidiosa mediocridade. As dimensões da tela cinematográfica facilitam o fenômeno de possessão temporária definido como diversão ou entretenimento. Ainda que no plano da fantasia, da representação, possam aflorar as pulsões sexuais ou de violência reprimidas. São emoções fortes ou a contemplação da beleza, gênero de primeira necessidade que fora da sua forma natural é muito mal distribuído. A tela grande possibilita a expansão da vida, simples assim. Vindo bem de longe e de fora, vamos chegando perto de nosso assunto, o cinema digital. Mas era indispensável primeiramente evocar o cinema, esse desconhecido.
Há uma piada espanhola que só tem graça para quem conhece a história política daquele país. Mas que uma vez compreendida, seu efeito é didático. A República Espanhola, nos anos trinta, foi o parque temático da esquerda mundial. Lá foi muito importante o movimento anarquista, que veio parar no Brasil por meio da imigração para a América Latina, no início do século XX, juntamente com a dos italianos. E também o movimento comunista que liderou sua fase republicana , até que a mesma foi derrotada pelo Generalíssimo Francisco Franco, dando início a uma longa noite de ditadura militar, cujo modelo fez muito sucesso pela América Latina afora. Pois bem, reza o sainete que no início vieram os comunistas, não tão espertos, importando o slogan da Revolução Soviética: “a terra para quem trabalha”. Logo depois vieram os anarquistas, que já eram um pouco mais espertos e disseram: “o produto da terra para quem trabalha”. Em seguida vieram os capitalistas, que são espertíssimos, arrematando: “e nós fazemos a distribuição”. A história já aqui evocada da constituição de uma globalizada economia de rede de distribuição do cinema americano, em seguida à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ilustra perfeitamente a assertiva.
Mas não caiamos na armadilha evocada por Gonzaga em determinada altura do livro, quando os exibidores e suas associações de classe vão procurar as autoridades do Ministério da Cultura, à época, para tratar de problemas específicos da área. Nem os governos nem as sucessivas gerações de produtores cinematográficos brasileiros jamais entenderam a importância da exibição no tecido social do país e na economia do cinema brasileiro.
O encontro então passa a ser monopolizado pela obsessiva preocupação oficial com o cinema digital e do monopólio da distribuição que ele possibilitaria. Sem tempo disponível para tratar dos problemas reais, ganhou espaço a visão paranóica de um grande irmão controlando desde Los Angeles as telas de cinema do Brasil por meios digitais. Esquecendo que o trauma é sempre no passado e que o estupro já se deu. Penetrar no esquema tradicional dos circuitos de exibição e das empresas de distribuição americanas (ou globalizadas, com sede em Londres, Amsterdam ou Budapeste) equivale a invadir militarmente os Estados Unidos.
A ocupação da rede mundial de televisão por assinatura ou a predominância de gigantes como a Microsoft, Google, Yahoo, na briga de foice da internet não nos deixa mentir. Oitenta por cento da circulação de dados na internet se faz em língua inglesa. A descrição que Gonzaga faz das aquisições e fusões dos grandes estúdios cinematográficos por mega-conglomerados financeiros ou midiáticos é a demonstração cabal não só da importância da produção de conteúdo, mas especificamente daquele cinematográfico. Por que um produto cujo consumo se tornou elitizado e cuja fabricação representa investimento extremamente arriscado – é mais seguro jogar na Bolsa, diz o teórico de economia do entretenimento Robert Vogel – despertaria tanto interesse no jogo bruto e concentracionista da economia globalizada?
É que seguramente aí, tem. Cacá Diegues, arguto estrategista e fino observador do jogo político audiovisual internacional, notou que Barack Obama, em seu aguardado discurso de resposta do governo americano à crise mundial, se referiu a um investimento de aproximadamente oitocentos milhões de dólares para a conversão das salas de exibição americanas de analógicas (mecânicas e óticas) em digitais. O fato passou desapercebido, ninguém deu relevo. “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, já dizia Juracy Magalhães, tenentista em 1922, revolucionário em 1930 com Getúlio e seu interventor federal na Bahia, prócer udenista em 1945, governador eleito da Bahia nos anos cinqüenta, logo no início da ditadura militar, quando foi embaixador em Washington. Atualmente, na citação de celebridades remotas, não-instantâneas, tornou-se necessário incluir a folha corrida que dispensa a inevitável consulta ao Google. É dentro desta sistemática que se insere a intervenção de Gonzaga, mas que vai além dela.
*Trecho do prefácio de Gustavo Dahl do livro “A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual”, de Luiz Gonzaga Assis de Luca.
A Obra
Título: A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual
Autores: Luiz Gonzaga Assis de Luca
Editora: Imprensa Oficial – Coleção Aplauso
Páginas: 400
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