Libia Villazana*
As possibilidades de produção cinematográfica na América Latina aumentaram na medida em que aumentaram os convênios internacionais de produção a partir dos anos 1980. O resultado das produções que se realizam sob esses tratados internacionais gerou controvérsias; alega-se que muitos desses filmes estão descontextualizados culturalmente, que são filmes destinados mais especificamente a um público estandardizado. No entanto, se reconhece a necessidade desses tratados, como por exemplo, do Programa Ibermedia, criado em 1997, porque por um lado permitem que a cadeia de produção continue em movimento, e por outro oferecem um tipo de apoio às indústrias cinematográficas desatendidas pelos governos nacionais.
Por sua vez, a partir de 2005, a América Latina lançou projetos de integração cuja missão é apoiar a indústria cinematográfica da região, como é o caso do Mercado del Film del Mercosur (MFM). O objetivo deste capítulo é estudar o surgimento, o funcionamento e as implicações ideológicas que derivam desses dois projetos de integração tão distintos, um de caráter internacional, ibero-americano, o Programa Ibermedia, e outro de caráter subcontinental, latino-americano, o Mercado del Film del Mercosur.
O Fondo Iberoamericano de Ayuda (Ibermedia) nasceu como conseqüência dos acordos feitos na Cumbre Iberoamericana de Jefes de Estado y de Gobierno (Conferência Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo), que se realizou em Margarita, na Venezuela, em novembro de 1997. Aqui se concretizou a necessidade de estimular os mecanismos de coprodução de filmes tanto para cinema quanto para televisão entre os países ibero-americanos. Também se decidiu apoiar a montagem inicial de projetos cinematográficos, a distribuição e a promoção de filmes no mercado regional e a formação de recursos humanos para a indústria audiovisual.
A idéia era criar um espaço audiovisual ibero-americano, alimentado por um fundo financiado pelos 14 países membros e observadores que integram a Conferencia de Autoridades Audiovisuales y Cinematográfica de Iberoamerica (Caaci). Estes países são: Argentina, Brasil, Colômbia, Cuba, Espanha, México, Portugal, Uruguai e Venezuela (países fundadores); Chile (que se incorporou em 1999), Peru (que o fez em 2000), Bolívia (em 2001), Porto Rico (em 2003) e Panamá (em 2006).
O objetivo do programa é proporcionar as condições necessárias, fundamentalmente financeiras e técnicas, para ativar os mecanismos de coprodução, distribuição, desenvolvimento e formação de projetos cinematográficos e televisivos independentes, dentro do espaço e do mercado latino-americanos.
Os recursos do fundo provêem das contribuições dos Estados ibero-americanos membros e observadores do fundo, os quais se comprometem a pagar uma cota anual mínima de cem mil dólares, e dos reembolsos dos empréstimos concedidos.
A soma entre os juros das contas bancárias abertas e os remanescentes permite dispor anualmente de ajudas econômicas de aproximadamente US$ 5 milhões. Cada país contribui com o que pode, desde que seja uma soma superior a US$ 100.000 e normalmente recebe uma quantidade superior à oferecida ao fundo. Por exemplo, em 2005 o Peru pagou a cota mínima, US$ 100.000, e recebeu US$ 165.000, que se traduziram em apoio a três projetos: o de Francisco “Pancho” Lombardi, Mariposa Negra, que recebeu US$ 110.000; o de Andrés Cotler, Pasajeros, ao qual se concedeu US$ 50.000; e os US$ 5.000 restantes foram para um projeto em desenvolvimento do diretor Chicho Durán. O país que mais contribui com o Ibermedia é a Espanha, com aproximadamente US$ 2.000.000 anuais.
O Ibermedia é formado por um Comité Intergubernamental (CII) e uma Unidad Técnica (UTI). O CII é a autoridade máxima, que se reúne duas vezes por ano, para eleger os projetos aos quais se concederá ajuda. Têm acesso ao CII os países membros da Conferencia de Autoridades Audiovisuales y Cinematográfica de Iberoamerica (Caaci), que destinam ao fundo um valor mínimo de US$ 100.000. À UTI, por sua vez, cabe a responsabilidade executiva do programa e é contratada pela Caaci. A UTI, com sede na Espanha, recebe apoio administrativo da Agencia Española de Cooperación Internacional (Aeci), um fato que induz a pensar que a Espanha exerce grande influência sobre o fundo. As solicitações são enviadas primeiramente à UTI e, posteriormente, são consideradas pelo CII. O Ibermedia trabalha em coordenação com a Secretaría Ejecutiva de la Cinematografía Iberoamericana (Seci) e a Federación Iberoamericana de Productores Cinematográficos y Audiovisuales (Fipca).
Os programas de ajuda estruturam-se da seguinte forma:
1. Apoio à coprodução de filmes ibero-americanos baseado em empréstimos reembolsáveis atribuídos a cada coprodutor, em função de sua porcentagem de participação financeira na coprodução. O empréstimo concedido não pode exceder US$ 200.000, nem superar 50% do orçamento total. A ajuda obtida é reembolsada a partir da renda líquida de cada coprodutor.
2. Apoio à distribuição/promoção e vendas internacionais delivery de filmes latinos: consiste em empréstimos reembolsáveis a partir da renda do distribuidor. O valor máximo da ajuda é de US$ 30.000 por filme.
3. Desenvolvimento de projetos de cinema e televisão ibero-americanos: o montante concedido não pode superar 50% do orçamento total do desenvolvimento do projeto e o valor máximo da ajuda é de US$ 15.000, a título de empréstimo reembolsável.
4. Apoio a programas de formação: dirigido aos profissionais da indústria audiovisual ibero-americana. Não excede 50% do valor dos estudos e concede até US$ 50.000 por participante. Em relação à distribuição dos recursos do fundo, o artigo 10 do capítulo VI da Regulação do Funcionamento do Programa Ibermedia estabelece as seguintes porcentagens:
• sessenta por cento (60%) para coproduções;
• trinta por cento (30%) para distribuição e promoção;
• cinco por cento (5%) para desenvolvimento de projetos;
• cinco por cento (5%) para formação.
No entanto, a divisão anual do montante arrecadado pelo fundo tem variado nos dez anos de funcionamento do Ibermedia (de 1997 a 2007). É notória a distribuição do fundo em 2005, quando apenas 3,08% foram dedicados à distribuição e promoção de filmes e 86% à coprodução, ficando assim a distribuição como a categoria que recebeu menor ajuda financeira. Em 2006, a distribuição passou a ser a terceira prioridade, muito abaixo da coprodução e do desenvolvimento de projetos. Segundo os dados fornecidos em 2006 por Elena Villardel, da UTI, desde sua criação o Ibermedia aprovou 763 projetos, que se distribuíram da seguinte forma:
• 201 projetos em coprodução;
• 199 projetos de desenvolvimento;
• 175 projetos para distribuição;
• 168 profissionais apoiados no campo audiovisual.
Com base nestes números depreende-se, claramente, que a coprodução é a prioridade do Ibermedia e a distribuição mantém-se na terceira posição. Segundo Víctor Sánchez, da UTI, os critérios em que se baseia o CII para determinar estas porcentagens são os seguintes:
• no regulamento do Ibermedia, que propõe um ponto de partida para essas porcentagens;
• no número de projetos apresentados;
• no fundo de recursos disponíveis.
Uma modificação importante, introduzida em 2006 – que deve possivelmente reverter os critérios de distribuição do fundo –, é a realização de seleções duas vezes ao ano. Dentro dos benefícios que essa nova iniciativa traz, está a flexibilização quanto à produção, já que se reduz a espera da concessão do crédito.
Deseja-se, também, conseguir uma maior atividade na distribuição de filmes, porque isto poderia permitir pautar uma programação mais próxima à realidade das salas de exibição.
Há dois aspectos a ressaltar concernentes aos programas de fomento. O primeiro é que eles se baseiam em empréstimos e não em bolsas, exceto aos programas de formação. O segundo é que a distribuição de recursos do fundo prioriza os fomentos a coproduções de filmes. Não obstante, o fundo pode conceder vários auxílios a um só filme. Ou seja, um mesmo filme que obtém o financiamento de coprodução pode também receber o de distribuição. É inclusive uma vantagem para a solicitação de ajuda de distribuição o fato de que o filme em questão tenha sido coproduzido com fundos do Ibermedia. O Ibermedia oferece dois notáveis benefícios por meio de seus programas de fomento:
1. Subvenção de projetos audiovisuais, permitindo o aumento do número de filmes ibero-americanos produzidos e estreados na América Latina. A subvenção também oferece a oportunidade de se continuar produzindo cinema na região.
2. Extensão do mercado de origem do filme. Isto poderia significar o aumento da possibilidade de recuperar os custos de produção, conseguindo, dessa forma, a continuidade do funcionamento da cadeia de produção da indústria cinematográfica. Por outro lado, o filme ganha maior visibilidade ao ser distribuído em mais de um país.
O fundo apresenta alguns problemas. Do ponto de vista do fortalecimento da indústria, dá pouca ênfase à distribuição. Em 30 de setembro de 2003, foi realizada uma coletiva de imprensa em que se apresentaram os resultados do Programa Ibermedia, por ocasião de seu quinto aniversário. Então, um grupo de cineastas assinalou que o grande problema que o cinema latino-americano enfrenta é a distribuição.
Entre as possíveis soluções que se discutiram estão a criação de um sinal único de televisão dedicado ao cinema e a promoção das produções ibero-americanas por meio das televisões públicas dos países que participam do Ibermedia. Nenhum desses projetos concretizou-se até hoje e o fator distribuição ainda permanece em terceiro lugar. Em alguns casos, inclusive, somente 3,08% do orçamento são canalizados para a distribuição, problema da indústria cinematográfica latina e quase do cinema mundial.
Apesar do surgimento recente de novas emissoras de televisão na América Latina, como Telesur e Tal TV, estas não foram criadas por meio do Ibermedia, e sim, respondendo mais exatamente a políticas de integração – de caráter geral e não especificamente relacionado ao cinema da região – dos governos latino-americanos.
Por outro lado, na seção “Elegibilidade” do programa “Coprodução” do Ibermedia, está estipulado que será dada preferência às coproduções que já tenham distribuição comercial garantida em ao menos um dos Estados membros do fundo. Esta cláusula representa não só um exemplo a mais de supremacia do distribuidor, dentro da cadeia de indústria cinematográfica, mas também o tácito reconhecimento, pelo Ibermedia, da importância da distribuição. Por sua vez, a Motion Picture Association of America (MPAA), quando negocia com o cinema latino-americano, prefere concentrar seus esforços na distribuição de filmes, porque sabe que é por meio da distribuição que se obtém grande superávit na indústria do cinema.
Com esta finalidade, a MPAA associou-se, por meio de distribuidoras como a Buena Vista Internacional, a produtoras latino-americanas, como é o caso de Patagonik Film Group, a produtora mais importante da Argentina e uma das maiores da América Latina. A Patagonik produziu Nove rainhas (Nueve reinas), de Fabián Bielinsky (2000), O filho da noiva (El hijo de la novia), de Juan José Campanella (2001) e Todas las azafatas van al cielo, de Daniel Burman (2002), todos com grande sucesso de bilheteria.
Nessa mesma linha, considerando que o Ibermedia está centralizando cada vez mais as coproduções realizadas na América Latina, pergunto a Victor Sánchez, da UTI, se a MPAA mostrou interesse em associar-se ao fundo. Victor me respondeu que: Em uma reunião da Caaci [Conferencia de Autoridades Audiovisuales y Cinematográfica de Iberoamérica e não do Ibermedia], em julho de 2002, em Margarita, Venezuela, Steve Solot, representante do MPAA na América Latina, foi convidado para dar um curso de roteiro, e mostrou em suas palavras satisfação e interesse em “colaborar” com o desenvolvimento do espaço audiovisual ibero-americano e as iniciativas que o sustentam, mas eu não chamaria de “interesse em participar do Ibermedia” nem de nada parecido. Pelo próprio regulamento do Ibermedia e por sua instrumentação de amparo da Cumbre Iberoamericana de Jefes de Estado y de Gobierno, sinceramente vejo esta possibilidade como inviável neste momento.
O regulamento do Ibermedia estipula como condição sine qua non o caráter independente da companhia participante, e a MPAA, como sabemos, é a antítese da independência. Um segundo problema do Programa é a inexistência de um fundo de financiamento para a exibição. O distribuidor tem um papel preponderante, pois em última instância se trata daquele que comercializa o filme. Assim, a batalha se trava entre distribuidores e exibidores. O distribuidor pressionará para negociar o filme a preços altos ou com o propósito de obter a maior porcentagem possível do rendimento de bilheteria e o exibidor pretenderá oferecer uma porcentagem fixa desse rendimento. A isso se adiciona a obrigação de alguns exibidores em cumprir cotas de tela – determinação que obriga salas de cinema a dedicarem parte de seus horários a produções nacionais –, medida de proteção à indústria nacional. Nesse sentido, Jorge Schnitman recorda que “historicamente, quando os exibidores eram forçados a exibir um grande número de produções nacionais, procuravam produzir seus próprios filmes” (JOHNSON e STAM, 1995).
Isso ocorreu, por exemplo, no Brasil no começo dos anos 1970, quando os exibidores, em resposta às pressões impostas pelo Estado para o cumprimento da cota de tela, formaram produtoras independentes para que seus filmes cumprissem os requerimentos do Estado – cotas de tela – e para evitar, ao mesmo tempo, a obrigatoriedade de dividir os lucros com os distribuidores. Como explicam Randal Johnson e Robert Stam no livro Brazilian Cinema, o resultado foi o nascimento da pornochanchada, filmes pornográficos de muito baixa qualidade que rapidamente adquiriram popularidade.
Em 1983, 74% da produção cinematográfica brasileira incluíam conteúdos pornográficos inspirados nas pornochanchadas (JOHNSON e STAM, 1995, p. 363). Tudo isso conduz a qualificar o exibidor como um agente que deve ser integrado às iniciativas de estímulo e promoção de uma indústria cinematográfica. No entanto, construir salas de cinema na América Latina, para permitir mais saídas para os filmes produzidos com ajuda do fundo, não é um dos focos do Ibermedia, de acordo com Victor Sánchez: A idéia de construir cinemas na América Latina está a anos-luz da realidade… Estivemos em Cartagena de Índias (Colômbia) em 2005, em uma reunião com distribuidores e exibidores, para ver de que maneira se poderia criar algum tipo de associação ou grupo de proprietários que se comprometesse com algumas de suas salas, para exibir mais produções ibero-americanas (não necessariamente filmes do Ibermedia) em troca de ajudas, como se fosse uma rede de salas. Comprovou-se que há muito trabalho pela frente e não devemos dar-nos por vencidos nesse aspecto.
Mas daí a construir cinemas… Existe ainda um debate sobre valores estéticos e temáticos dos filmes coproduzidos por meio do Ibermedia e outros programas similares. Por um lado, tem-se a preocupação com a perda de identidade cultural e a baixa qualidade estética que parece gerar grande parte desses filmes. Por outro, há apoio às iniciativas desse tipo, pelo fato de que favorecem ao menos a possibilidade de continuar fazendo cinema, mantendo, até certo ponto, ativa a engrenagem da indústria.
Não obstante, isso implica, em muitas ocasiões, em ter de fazer mudanças substanciais nos roteiros para adaptá-los aos requerimentos exigidos pelo fundo; assim como ter de cumprir com a obrigação de incluir atores e apoio técnico espanhol, por exemplo.
Cito o caso da Espanha porque as coproduções latino-americanas que devem incluir contingente espanhol representam a maior parte das coproduções – senão a totalidade – em relação àquelas coproduções espanholas com apoio do Ibermedia que incluem pessoal latino-americano. Isto ocorre por duas razões; primeiro, é maior a quantidade de produtoras espanholas que coproduzem, via fundo, com produtoras latino-americanas, porque é mais barato filmar na América Latina do que na Espanha; segundo, há interesse dos produtores latino-americanos em posicionar-se no mercado espanhol, vendo-o como ponte para introduzir-se no mercado europeu.
Pois bem, até que ponto o valor estético de um filme é consideravelmente afetado pela intervenção desses fatores? E até que ponto essa intervenção deveria ser motivo de preocupação? Uma possível resposta para tais perguntas pode ser encontrada nas palavras do diretor cubano Julio García Espinosa, em uma conferência no University College London, em fevereiro de 2005: Sabemos que nossa primeira obrigação é fazer com que a América Latina seja mais visível. Nossos países são países invisíveis. Um país sem imagem é um país que não existe. Uma morte em um país sem imagem é menos dolorosa do que uma morte em um país que conte com sua própria imagem. Por essa razão, qualquer tipo de filme, experimental ou não, é bem-vindo se nos faz mais visíveis.
Durante a sessão de perguntas e respostas após a conferência, Espinosa apontou que “a experiência de coprodução entre Cuba e Espanha é decepcionante. Aqueles que coproduzem estão quase sempre buscando abarcar um mercado amplo. O tipo de coprodução que funcionou foi entre os países latino-americanos”.
O paradoxo que surge como conseqüência da necessidade de produzir cada vez mais, sem parar muito para pensar no tipo de cinema que se faz, e ao mesmo tempo primar pela qualidade, tem acompanhado a história da coprodução cinematográfica latino-americana com o estrangeiro. Nesse sentido, o desenvolvimento do cinema latino-americano se debate – e talvez devamos incluir todo o cinema não hollywoodiano –, segundo palavras de Octavio Getino, entre “duas abordagens, a ‘economicista’ e a ‘ideológica’” (GETINO, 1990, p. 11).
Por sua vez, o cineasta espanhol José Luis Borau afirma que “às vezes a coprodução marca a história do filme com a presença de personagens estrangeiros ou a exigência de que transcorra em distintas cidades. E isso prejudica a validade artística de um filme. Não se faz uma coprodução para fazer um filme, mas esta se inventa para justificar uma produção” (RIX e RODRIGUEZ-SAONA, 1999, p.118). Esse é um debate inconcluso e talvez poderia solucionar-se caso sejam introduzidos ajustes nos tratados internacionais, que harmonizem as assimetrias de seus Estados membros.
*Trecho do artigo de Libia Villazana publicado no volume II – América Latina, da coleção “Cinema no Mundo: Indústria, política e mercado”, uma coedição do Instituto Iniciativa Cultural e Escrituras Editora.
Foto: Cena do filme “O Filho da Noiva” (2001), de Juan José Campanella.