Por Marijke de Valck*
Os festivais de cinema começaram como um fenômeno europeu. Observando a história dos festivais de cinema, fica claro que as motivações por trás da criação os primeiros eventos eram muito específicas e atendiam a interesses históricos locais. Ao mesmo tempo, não foi por acaso que os festivais originaram-se na Europa. Foi o contexto europeu – os sentimentos nacionalistas da época e a crise nas indústrias cinematográficas – que forneceu terreno fértil para o início de um fenômeno global. Os festivais de cinema podem ser entendidos primeiro como uma extensão das exposições internacionais, grandes mostras e feiras mundiais organizadas a partir de meados do século XIX.
A combinação entre a ideologia do Iluminismo e a fé nas conquistas da Revolução Industrial levou à criação de plataformas para a exibição de invenções ou feitos extraordinários. O segundo sentimento a inspirar a organização dessas exposições foi o orgulho nacionalista. As exposições eram ocasiões importantes nas quais as nações podiam se apresentar como órgãos unificados, claramente distintos de outras nações. O cinema já era usado nessas competições e exibições antes da Primeira Guerra Mundial. Acredita-se que Mônaco fez a estréia, no Ano Novo de 1898, do primeiro festival de filmes da História.
Festivais de cinema também foram realizados em Turim, Milão e Palermo (Itália), Hamburgo (Alemanha) e Praga (na atual República Tcheca). O primeiro festival com premiação foi um concurso italiano organizado em 1907 pelos irmãos Lumière.
Com a introdução do som, a nacionalidade de um filme ganhou importância. A língua falada nos filmes não era apenas uma clara expressão da cultura nacional, mas também um fator importante para a possibilidade de exportação das produções. A Primeira Guerra Mundial havia dado à indústria cinematográfica americana a oportunidade de dominar o mercado mundial e forçado as nações européias a reagir com diversas medidas para proteger suas indústrias nacionais. A introdução do som mergulhou as indústrias cinematográficas européias em uma profunda crise.
Os festivais de cinema podem ser vistos como uma das respostas protecionistas ao domínio hollywoodiano dos mercados cinematográficos europeus. Mas a história do primeiro festival de cinema permanente, em Veneza, também deixa claro que outros objetivos estavam envolvidos. (…)
Os festivais e o cinema como negócio
Apesar do espírito crítico de 1968 e das medidas adotadas em resposta às queixas, o papel dos festivais de cinema como locais de negociação comercial não diminuiu. Pelo contrário: Cannes, no início um lugar onde ocorriam algumas compras e vendas, transformou-se na feira mais importante da indústria cinematográfica.
Para muitos visitantes, a programação cultural tornou-se menos importante que as oportunidades de negócios oferecidas por Cannes. O início dos anos 1970, por exemplo, foi dominado pela presença da indústria pornográfica. Como os filmes exibidos aos potenciais compradores na feira não estavam sujeitos à censura francesa, o nicho pornográfico teve chance de crescer.
A partir de 1976, os administradores do festival passaram a exigir uma sinopse e o número de filmes pornográficos exibidos caiu novamente. No fim dos anos 1970 e começo dos 1980, protagonistas de fora da indústria cinematográfica entraram na feira, como a televisão a cabo. Na década de 1980, o glamour comercial atingiu um ápice em Cannes. Em apoio a suas atividades na feira, as empresas iluminavam a cidade com outdoors, merchandising, anúncios e estratégias de marketing.
Particularmente Menahem Golan e Yoram Globus, do grupo Canon, ficaram famosos por comprar e atrair exposição excessiva na mídia nos anos 1980. As principais estratégias de negócios dessa época eram as pré-vendas e a contratação de astros. As pré-vendas significavam que, ainda na fase de pré-produção, os direitos para exibição em salas de cinema em vídeo e TV a cabo já estavam vendidos, muitas vezes representando o financiamento necessário e tornando a renda da bilheteria supérflua e puramente lucrativa. A contratação de astros envolvia regularmente a aquisição da assinatura de superastros, em troca da concessão de um emprego a um parente ou amigo com a função que desejavam exercer no filme.
A Berlinale também se reposicionou como protagonista significativo no cenário da indústria cinematográfica global, expandindo a feira de cinema. De fato, o reconhecimento do importante papel da feira pôs fim a uma antiga discussão sobre a reprogramação ou não do festival para o inverno. O novo diretor Wolf Donner (1976-1979) argumentou que a expansão da Filmmesse (Feira do Cinema) seria beneficiada pela antecipação no calendário. Sem a influência das outras grandes feiras de cinema de Cannes (maio) e Milão, os profissionais da área seriam atraídos para Berlim e poderiam lançar diretamente filmes recém-adquiridos (sem precisar considerar um recesso de verão).
A partir de 1978, a Berlinale aconteceu no inverno, primeiramente no fim de fevereiro e início de março, mas logo, sob pressão de Cannes e da International Federation of Film Producers Associations (FIAPF) – Federação Internacional das Associações de Produtores Cinematográficos – passou para o início de fevereiro.
Nos anos 1980, o número de festivais de cinema aumentou rapidamente. Este segundo boom foi um evento global. Na Europa, América do Norte, América do Sul, Ásia, Austrália e até mesmo África, as iniciativas se sucederam. Graças à escala do desenvolvimento, esses festivais tiveram papel importante na consolidação de “outras” formas de cinema. O cinema de arte, o terceiro cinema e os filmes independentes (indies) conquistaram um nicho no mercado cinematográfico mundial.
Hollywood manteve o domínio da produção, distribuição e exibição comerciais, mas um campo menor se formou. Os festivais de cinema – os locais de exibição mais importantes para esses tipos de filmes – tornaram-se pontos de encontro de distribuidores e produtores. Muitos filmes percorreram o circuito dos festivais e encontraram público fora dos cinemas comerciais.
A popularidade dos festivais de cinema levou ao reconhecimento do potencial econômico dos filmes exibidos nesses festivais. Harvey Weinstein, da Miramax, alcançou um status quase mítico, distribuindo filmes independentes como Sexo, mentiras e videotape/Sex, lies, and videotape (Steven Soderbergh, 1989), Palma de Ouro de 1989. De acordo com Alisa Perren, Sexo, Mentiras e Videotape “deveria ser considerado central para o desenvolvimento da estética, economia e estrutura da Nova Hollywood. Sexo, mentiras e videotape introduziu a era dos indie blockbusters – filmes que, em menor escala, repetem a campanha de marketing e o desempenho de bilheteria dos filmes populares dos grandes estúdios”.
A consolidação do sucesso da Miramax está ligada ao fato de a empresa ter se tornado uma subsidiária da Disney Corporation, adquirindo uma posição financeira estável. De fato, tanto as grandes distribuidoras quanto as menores ou independentes começaram a usar festivais de cinema em suas estratégias de marketing.
Os festivais foram usados para posicionar filmes com lançamentos cuidadosamente planejados. A bruxa de Blair/The Blair witch project (Daniel Myrick, 1999) provou que um filme de baixo orçamento, minimalista e alternativo pode alcançar um enorme público internacional e ser um sucesso comercial com técnicas de marketing inteligentes, incluindo festivais. Especialmente para o mercado europeu, os festivais de cinema passaram a ser vistos como boas oportunidades de marketing, pois a participação e a vitória nas principais programações competitivas ajudam um filme a ser sucesso de bilheteria.
Os produtores americanos às vezes evitavam as mostras competitivas nos festivais de cinema, temendo que seu produto fosse estigmatizado como filme de arte. Ao mesmo tempo, os distribuidores americanos usavam as sessões “fora da competição”, “evento especial”, “filme de abertura” e “filme de encerramento” para atrair a atenção adicional a seus blockbusters. A estréia mundial de Matrix Reloaded/The Matrix Reloaded (Andy Wachowski, 2003) aconteceu em Cannes, em 2003. Chicago (Rob Marshall, 2002) havia sido o filme de abertura em Berlim daquele ano, em sua estréia européia. O prestígio do festival deu força a Chicago para a premiação do Oscar, um mês depois. O filme foi o grande vencedor da cerimônia, com seis Oscars, incluindo os de Melhor Filme, Melhor Direção de Arte e Melhor Atriz Coadjuvante, para Catherine Zeta-Jones.
*Trecho do artigo de Marijke de Valck publicado no volume V – Europa, da coleção “Cinema no Mundo: Indústria, política e mercado”, uma coedição do Instituto Iniciativa Cultural e Escrituras Editora.