Cadeia produtiva nacional

Cadeia produtiva nacional

 

Por João Paulo Matta e Elizabete Souza

Embora o mercado cinematográfico brasileiro seja o décimo no mundo em arrecadação e o sétimo em público, não se pode caracterizar o filme brasileiro como autosustentável (KLOTZEL, 2006). Depois da maior crise de sua história no governo Collor (em 1992, o market share, no mercado interno, atingiu o recorde de – 0,05%), o cinema brasileiro melhorou seu desempenho a partir de 1995. Entre 1997 e 2003, o público subiu de 2,4 milhões para 22,1 milhões, e sua participação cresceu de 5% para 21,4% (MATTA, 2004).

Nos anos subsequentes, porém, a cinematografia brasileira não conseguiu sustentar o círculo virtuoso de crescimento, reduzindo sua participação no mercado de 21,4% para 14% entre 2003 e 2004, e de 12% para 11% entre 2005 e 2006 (FILME B, 2007).

Earp e Sroulevich (2008) afirmam que o mercado de cinema brasileiro ainda não mereceu análises sistemáticas de economistas. José Carlos Durand (2008) destaca a relutância das ciências sociais em reconhecer a lógica dos interesses subjacentes ao mundo da estética. De fato, só mais recentemente a indústria brasileira de cinema vem despertando o interesse acadêmico. Trata-se, assim, de um campo de conhecimento em construção. Glynn (2000) aponta que existe vasta documentação sobre relações conflituosas e ambivalentes na aproximação da produção artística dos elos comerciais.

Klotzel (2006, p. 19) considera o cinema o produto audiovisual mais nobre, pelo elevado nível de custos e de elaboração, ou por que é fonte de identificação e emoção, amalgamando o pensamento artístico e cultural com o pragmatismo de interesses comerciais e ideológicos, o que concilia “o pensamento objetivo da indústria com o subjetivo da criação artística”.

Earp e Sroulevich (2008) contribuem para essa construção com estudo exploratório sobre as estruturas de mercado da indústria brasileira. Ressaltam que, ao lado da intensa difusão de inovações tecnológicas e organizacionais que barateiam produtos e simultaneamente revolucionam as formas de organização da produção e do consumo, a cadeia de produção do cinema no Brasil caracteriza-se por forte desequilíbrio entre seus elos.

O elo de produção, marcadamente nacional, reúne uma miríade de produtores, alguns tradicionais e outros entrantes, oriundos da área de propaganda e publicidade. Já no de distribuição, predominam filiais das majors norte-americanas – Disney, Sony, Warner, Fox, Paramount e Universal – e as brasileiras Europa Filmes e Imagem Filmes.

No elo de exibição, as três maiores firmas respondem por mais da metade dos negócios. Sobre o comportamento da demanda, indicam que: (i) existe forte correlação entre o aumento do ingresso e a queda no número de ingressos vendidos; (ii) a partir de 1988, há uma queda do preço dos ingressos que precede a recuperação de público; (iii) a partir de 2003, existe uma redução de público que permanece até o presente, o que coincide com a baixa de preços de produtos eletrônicos e a expansão do crédito para tais produtos; (iv) a evolução de público dos fi lmes brasileiros no mercado nacional não guarda nenhuma relação com o preço do ingresso, o que parece sugerir que a demanda pelo fi lme nativo é função de sua qualidade e do marketing para torná-lo blockbuster (EARP, SROULEVICH, 2008).

Matta (2004) identificou uma melhoria de competitividade dos filmes nacionais no mercado interno de salas de exibição, em razão do crescimento e da manutenção de um fluxo anual de 20 a 30 filmes lançados, com uma distribuição eficiente de grandes companhias estrangeiras que aproveitam o incentivo fiscal previsto no art. 3° da Lei do Audiovisual.

Cita também a importância do aprimoramento da qualidade e a diversidade das produções nacionais, agregadas à integração entre televisão e cinema, a partir da criação da Globo Filmes em 1997, além da aproximação entre produção e distribuição via parcerias, que diminui o risco dos lançamentos.

Gatti (2005) constata a transformação dos elos da cadeia cinematográfica no Brasil entre 1993 e 2003, em função de concentração econômica inédita. Co-produções estrangeiras passaram a ditar um melhor desempenho da indústria, via art. 3° da Lei do Audiovisual, com grupos estrangeiros dominando a distribuição (majors) e a exibição (Cinemark e UCI). Isso sinaliza a internacionalização da economia cinematográfica brasileira, com a desnacionalização do controle do processo econômico do filme nacional.

Fornazari (2006) evidencia que, a partir de 1930, no Brasil, com a intervenção estatal, o cinema deixa de ser atividade regulada apenas por leis de mercado. Abrangente, a atuação do Estado se volta para o atendimento a interesses corporativos, a proteção de setores da indústria nacional, a propaganda política ou, ainda, para objetivos educativos e de difusão cultural, acionando instrumentos de fomento e de proteção. Conclui o autor que a intervenção estatal, todavia, não tem sido suficiente para dotar a indústria nacional de condições competitivas equivalentes ou próximas às da indústria norte-americana.

Ao focalizar a indústria brasileira de filmes, Kirschbaum (2006) investigou a dinâmica de campos organizacionais com base em abordagem de redes sociais. Seus resultados indicam que os recursos de transformação e capacitação para o sucesso do filme predizem melhor sua popularidade do que os recursos mobilizados ou as capacitações para a mobilização de recursos, o que não corrobora os resultados encontrados por Lampel e Shamsie (2003) sobre a indústria de cinema norte-americana.

Kirschbaum (2006) explica tal diferença pela baixa exposição dos recursos brasileiros (atores e diretores) no mercado mundial.

Giannasi (2007) destaca a importância do trabalho em equipe e da sinergia, a dependência com relação à tecnologia estrangeira e a falta de pontos de exibição. Conclui que falta um projeto de política cultural e cinematográfica nacional, como há em outros países, e que prevalecem historicamente três problemas: dependência tecnológica, dependência governamental e dominação estrangeira.

Todos os estudos revisados adotam uma abordagem agregada, seja tratando o desempenho da indústria com enfoques inspirados em organização industrial (GIANNASI, 2007; GATTI, 2005), ou porteriana (MATTA, 2004), seja focando interações entre atores e seus papeis categóricos por meio da análise de redes sociais (KIRSCHBAUM, 2006), ou ainda a evolução dos mercados com base em técnicas quantitativas e estatísticas (EARP e SROULEVICH, 2008), e de políticas públicas de regulação e de incentivo para o setor (FORNAZARI, 2006).

Este artigo adota uma perspectiva mais micro, focada em dois casos particulares. Seu objetivo é discutir a trajetória de produção, comercialização e exibição, no mercado interno de salas de exibição, dos filmes “Cidade de Deus” e “Janela da Alma”, colhendo subsídios para mapear convergências, diferenças e associações entre suas configurações
e postulações teórico-empíricas sobre novas formas de organização e capacitação da indústria do cinema.

Lançados em 2002, esses filmes, fenômenos de bilheteria e marcos da retomada do cinema brasileiro, com premiações nacionais e internacionais, são casos ainda não tratados da perspectiva aqui anunciada. Acredita-se que, em momentos de mudanças relativas, perspectivas mais centradas em descrição de casos podem concorrer para elucidar aspectos que não vêm à tona quando são analisadas indústrias, políticas e interações entre atores de forma mais extensiva e quantitativa.

Trata-se de estudo de caso múltiplo, de natureza exploratória, com base em triangulação de fontes, que envolve pesquisa bibliográfica, documental e de campo, com entrevistas semi-estruturadas aplicadas entre 2003 e 2004, realizadas por telefone com gravação ou por e-mail, com base em roteiros específicos para produção e para distribuição.

Sobre “Janela da Alma” foram entrevistados João Jardim, autor do argumento, diretor e produtor, e Bianca de Felippes, sócia da Copacabana Filmes e Produções, a empresa distribuidora. Sobre “Cidade de Deus”, foram entrevistados Fernando Meirelles, diretor e sócio da O2 Filmes, empresa produtora, Isabel Berlinck, produtora da O2 Filmes, Lamartine Ferreira, assistente de direção, e Anna Luiza Müller e Bruno Wainer, executivos da empresa distribuidora Lumière.

Este artigo tem cinco partes. A seção seguinte apresenta parâmetros analíticos básicos para o estudo dos casos. Na terceira e quarta seções, discutem-se, respectivamente, os casos “Cidade de Deus” e “Janela da Alma”. A síntese dos resultados, as limitações do trabalho e as possibilidades de estudos futuros constam nas conclusões.

Leia o artigo na íntegra.