Cinema e Políticas de Estado

Cinema e Políticas de Estado

 

Por Melina Marson*

Em meados da década de 1990, o cinema brasileiro, após um período de crise, se recuperou: ganhou visibilidade e respeito, conseguiu cativar o público, voltou a ser manchete na imprensa e ganhou até torcida durante as premiações do Oscar às quais concorreu. Nas telas brasileiras surgiu o Cinema da Retomada. Mas o que aconteceu? Por que o cinema no Brasil havia sido dado como morto e como ele renasceu? Essas foram as principais questões que geraram este trabalho e nortearam seu desenvolvimento.

O termo Cinema da Retomada não diz respeito a uma nova proposta estética para o cinema brasileiro, nem mesmo se refere a um movimento organizado de cineastas em torno de um projeto coletivo – uma formação, de acordo com os termos de Raymond Williams. O Cinema da Retomada refere-se ao mais recente ciclo da história do cinema brasileiro, surgido graças a novas condições de produção que se apresentaram a partir da década de 1990, condições essas viabilizadas por intermédio de uma política cultural baseada em incentivos fiscais para os investimentos no cinema. A elaboração dessa política cinematográfica alterou as relações entre os cineastas, e, simultaneamente, exigiu novas formas de relacionamento destes com o Estado, seu principal interlocutor.

Muito se falou sobre o Cinema da Retomada na mídia, no discurso oficial do Estado e em obras específicas sobre cinema1. Mas, em geral, as análises sobre o período tiveram como foco principal os filmes ou os seus diretores e não se fixaram nas condições de produção.

Partindo da perspectiva de que há uma estreita relação entre as obras e suas condições de produção, o que, segundo José Mário Ortiz Ramos, “consiste em conceber os filmes como produtos culturais, ou bens simbólicos, caminhando no sentido de delinear as determinantes sociais de sua produção”, este livro propõe a investigação do campo cinematográfico brasileiro nos anos 90 e suas relações com o Estado na elaboração de uma nova política cinematográfica.

A análise aqui apresentada, portanto, não é sobre os filmes do Cinema da Retomada, ou seja, não se trata de uma análise fílmica ou estética – embora alguns filmes tenham sido observados mais atentamente – mas sim uma análise das lutas internas no campo cinematográfico e seu constante diálogo com o Estado.

A referência ao campo cinematográfico revela a ligação metodológica desse trabalho com a obra de Pierre Bourdieu, com especial ênfase em seus trabalhos acerca da constituição dos campos artísticos enquanto esferas autônomas e, mais especificamente, acerca da formação do campo da indústria cultural. A utilização da teoria dos campos para analisar o Cinema da Retomada mostrou-se adequada porque permite perceber o campo cinematográfico como um importante lócus de produção material e simbólica que obedece a uma lógica própria de funcionamento, embora esteja em constante relação com outros campos, como o Estado.

Além de Bourdieu, outro importante referencial teórico utilizado para essa pesquisa foi a metodologia de investigação cinematográfica elaborada por Pierre Sorlin. Com base no método desse autor, foi possível analisar a produção do Cinema da Retomada como um conjunto não homogêneo, mas que apresentou características comuns relativas às novas condições de produção estabelecidas no período. Assim, partindo desse referencial teórico e metodológico, esse trabalho analisou o Cinema da Retomada, entendendo que para essa análise foi necessário perceber esse cinema como produto de disputas e acertos internos do campo cinematográfico, e de movimentações e articulações do Estado na elaboração de uma nova política cinematográfica.

O recorte da pesquisa

A história do cinema brasileiro é uma história feita de ciclos: a Bela Época (primeira década do século XX), o período da Cinédia (década de 1920), a época da Atlântida Cinematográfica (1940-50), a Vera Cruz (1950), o Cinema Novo (1960), o Cinema Marginal (1960-70), o período da Embrafilme (1969-90), o cinema da Boca do Lixo (décadas de 1970-80). Em todos esses ciclos, um ponto em comum se apresenta em relação ao campo cinematográfico: sua constante luta pela manutenção da produção, pela sobrevivência do fazer cinematográfico no Brasil. Em sua história de mais de cem anos, o cinema brasileiro não conseguiu se tornar uma atividade autossustentável, fazendo com que cada uma dessas etapas ou ciclos se encerrasse sem que fosse garantida a continuidade da produção cinematográfica.

Observar os ciclos da produção cinematográfica no Brasil é também observar as relações entre cineastas e Estado brasileiro. Desde 1932 (ano de criação da primeira lei federal de proteção ao cinema brasileiro) até hoje, inúmeros projetos e propostas para o cinema nacional foram elaborados, tanto por parte de cineastas como por parte do Estado, para tentar fazer com que o cinema se torne uma atividade profissional, se não altamente lucrativa, ao menos, viável. Em março de 1990, encerrou-se o ciclo de produção da Embrafilme, quando o presidente eleito Fernando Collor acabou com o Ministério da Cultura – que passou a ser parte do Ministério da Educação – e deu fim a políticas culturais que vinham sendo praticadas pelo Estado.

No caso do cinema, Collor extinguiu a Embrafilme (órgão responsável pelo financiamento, coprodução e distribuição dos filmes nacionais) e o Concine (órgão responsável pelas normas e fiscalização da indústria e do mercado cinematográfico no Brasil, controlando a obrigatoriedade da exibição de filmes nacionais).

O modelo de produção cinematográfica adotado pela Embrafilme, baseado em patrocínio direto do Estado, já vinha sendo criticado por cineastas, pela mídia e pela opinião pública. Havia problemas na empresa em relação à inoperância, má gestão administrativa, favoritismo e não cumprimento de compromissos. Mas a extinção desse modelo, sem sua substituição por outra política para a produção de filmes, fez com que o cinema brasileiro sofresse uma drástica queda em sua produtividade, chegando a níveis alarmantes: em 1992, por exemplo, apenas três filmes brasileiros foram lançados, contra uma média de oitenta lançados por ano durante a década de 803.

O encerramento do ciclo da Embrafilme fez com que o campo do cinema brasileiro se mobilizasse e procurasse novas formas de relacionamento com o Estado, na tentativa de encontrar alternativas de sustentação para o fazer cinematográfico. A partir desse diálogo entre cinema e Estado, que resultou numa reorganização do campo cinematográfico e em medidas institucionais, iniciou-se o que viria a ser conhecido como o Cinema da Retomada.

O Cinema da Retomada é geralmente compreendido como o cinema brasileiro produzido entre 1995 e 2002, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a partir da entrada em vigor da Lei do Audiovisual. Mas na verdade, para uma real compreensão da mesma, é necessário “voltar atrás”, partindo do governo Collor/Itamar, já que esse ciclo da cinematografia brasileira tem suas raízes ainda nos primeiros anos da década de 1990. Dito de outra forma, o Cinema da Retomada, que foi utilizado com um dos símbolos do governo FHC, tem origens nas políticas culturais iniciadas por Collor.

Este livro dedica-se ao estudo das relações entre o Estado e o campo do cinema no Brasil, entre 1990 e 2002. Como ponto de partida, foi adotado o fim da Embrafilme e a consequente extinção do modelo de produção cinematográfica utilizado no Brasil, e como
ponto final a criação da Ancine (Agência Nacional de Cinema) órgão oficial que implantou a política cinematográfica elaborada durante esse período.

A divisão dos capítulos

Para um estudo sociológico do Cinema da Retomada é necessária a análise desse cinema enquanto produto da nova concepção da política cinematográfica brasileira, levando em conta também as novas configurações e jogos de poder dentro do campo cinematográfico. Afinal, essas novas concepções e configurações, por si mesmas, alteraram a forma do fazer cinematográfico no Brasil, já que correspondem a transformações nas condições de produção, e essas transformações se refletem nos filmes do período.

Para a realização de tal análise, adotou-se a estrutura cronológica para a divisão dos capítulos. Essa opção pareceu ser a mais coerente, já que não separa os atores envolvidos no processo de elaboração da política cinematográfica (os cineastas e o Estado), e dessa forma privilegia os arranjos, as lutas e os acertos de cada período. Sendo assim, este livro foi elaborado em três capítulos, que correspondem a três diferentes momentos da relação cinema e Estado durante o período da Retomada.

O primeiro capítulo, intitulado “Preparando o terreno do Cinema da Retomada”, compreende o período de 1990 a 1994 e engloba os governos de Fernando Collor e Itamar Franco. Nesse capítulo é analisado o fim do ciclo da Embrafilme, que coincide com questionamentos sobre a possibilidade do cinema como atividade autossustentável no Brasil e a relação de dependência do mesmo em relação ao Estado. O neoliberalismo do governo Collor, que concebeu a cultura e o cinema como “problemas de mercado”, motivou reações do campo cinematográfico e revisões dentro do próprio Estado, iniciando as discussões que levariam à implantação de uma política cinematográfica baseada na renúncia fiscal.

No segundo capítulo, foi abordado o período de maior visibilidade e produtividade do Cinema da Retomada, entre 1995 e 1998, que corresponde ao primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. “A Euforia da Retomada” analisa a consolidação
das leis de incentivo, que geraram um aumento da produção de filmes e iniciaram as primeiras lutas internas do campo cinematográfico do período. É nesse período que o Cinema da Retomada conquista o público brasileiro, com produções como Carlota Joaquina (Carla Camurati, 1995), O quatrilho (Fábio Barreto, 1996) e Central do Brasil (Walter Salles, 1998), ganha prêmios internacionais e readquire legitimidade frente à sociedade e força dentro do Estado.

O terceiro capítulo, intitulado “A crise e a repolitização do cinema”, analisa o período compreendido entre 1999 e 2002, durante o segundo mandato de FHC. Esse capítulo assinala os questionamentos e a volta do discurso político no cinema brasileiro, gerados pela crise que se abateu sobre o Cinema da Retomada no início de 1999, repercutindo na imprensa e abalando o modelo de produção das leis de incentivo. Tal crise também levou à realização de dois Congressos Brasileiros de Cinema (2000 e 2001) e à criação da Ancine em 2002.

Nesse período, foi considerada a necessidade da elaboração de uma política multimídia no Brasil que englobasse cinema, vídeo, televisão e publicidade – necessidade essa que não foi concretizada com a Ancine.

Ponto de partida e importante precedente em relação a esse trabalho foi a pesquisa coordenada por Lúcia Nagib, Cinema da Retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, que traça um painel da produção do Cinema da Retomada a partir do depoimento de seus realizadores.

Esse material foi fundamental para a pesquisa, e é um dos primeiros trabalhos a abordar a cinematografia brasileira contemporânea do ponto de vista dos cineastas, abrangendo questões estéticas, políticas e de produção.

*Introdução do livro “Cinema e Políticas de Estado – da Embrafilme à Ancine”, volume I da coleção “Indústria Cinematográfica e Audiovisual Brasileira”, uma coedição do Instituto Iniciativa Cultural e Escrituras Editora.

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