Por Alessandra Meleiro, de Londres
Após 18 anos sem filmar com o diretor Pedro Almodóvar, a atriz espanhola Carmen Maura, 61 anos, volta a atuar em seu último filme, “Volver”, que estréia no Brasil neste fim de semana. Sua interpretação lhe rendeu o prêmio de melhor atriz em Cannes, dividido com as outras cinco atrizes do elenco: Penélope Cruz, Lola Dueñas, Blanca Portillo, Yohana Cobo e Chus Lampreave.
Em “Volver”, Almodóvar resgata, mais uma vez, o patrimônio artístico e cultural espanhol, conseguindo se inserir no debate cultural internacional. Novamente, busca alternativas à configuração familiar tradicional, como ao introduzir fortes personagens femininos e, brutalmente, destruir os masculinos. O entusiasmo pela vida urbana, presente em sua filmografia, é agora temperado pela nostalgia de um passado rural – o filme é ambientado em La Mancha, sua região natal.
Em sua busca por novos parâmetros, Almodóvar, nos anos 1980, reiventou o “sabor espanhol” usado extensamente pelo discurso ideológico franquista e, por meio do humor, criticou a sagrada seriedade que dominou a maioria da arte espanhola dos anos 1960 e 70. Para isso, contou com colaboradores estáveis – técnicos, músicos e atrizes – que garantem a todo projeto de sua produtora, El Deseo, uma aura coletiva.
No grupo mais ou menos fixo de “chicas Almodóvar”, suas atrizes, encontram-se Marisa Paredes, Victoria Abril, Rossy de Palma e, sempre à beira de um ataque de nervos, Carmen Maura.
Os primeiros papéis de expressão de Carmen foram em “Tigres de Papel” (1977), de Fernando Colomo, seguido por “Olhos Vendados” (1978), de Carlos Saura. Em 1980, a atriz incentivou Almodóvar a levantar fundos para seu filme comercial de estréia, “Pepi, Luci, Bom Y Otras Chicas del Montón”, o primeiro dos sete longas que fizeram juntos. A sequência foi uma séria de atuações memoráveis, como em “Maus Hábitos” (1983), “Que fiz para Merecer Isto?” (1984) e “A lei do Desejo” (1987). Em 1988, o reconhecimento internacional finalmente se deu com Pepa, a neurótica personagem da comédia “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”. Desde então, Carmen recebeu numerosos prêmios e hoje, tendo atuado em mais de cem filmes, é a atriz mais requisitada na Espanha.
Leia a seguir entrevista exclusiva concedida no lançamento do filme “Volver”, que também integrou o II London Spanish Film Festival, em Londres.
Valor: Pedro Almodóvar disse que o único papel que desenvolveu para v. foi em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, mas foi em “Pepi, Luci, Bom” que a coloboração artística melhor funcionou. Como analisa sua trajetória com Almodóvar?
Carmen Maura: Trabalhar com Almodóvar nos anos 1980 era considerado vulgar. Victoria Abril não aceitou fazer o papel de Glória, em “Que fiz para Merecer Isto?”, assim como não aceitou atuar em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”. Para mim, é difícil chorar quando atuo, mas durante a filmagem de “Mulheres” chorava muito, foi uma relação muito ruim com Pedro. Depois do filme, passamos 18 anos sem conversar.
Valor: Federico Garcia Lorca escreveu grandes papéis para mulheres porque, dizia, há melhores atrizes que atores na Espanha. Concorda com essa afirmação?
Sempre foi mais fácil fazer o “casting” de mulheres do que de homens na Espanha. Por exemplo, Alex de la Iglesia me procurou e disse: “Tenho um papel que é para um homem mas, se você aceitar, mudo para uma mulher”. Assim como na Itália, as mulheres têm um papel-chave na sociedade espanhola, e isso repercute nos roteiros. Nos “pueblos”, assim como aparece em “Volver”, que se passa em La Mancha, quem você pensa que manda nas casas e no vilarejo?
Valor: Grande parte dos diálogos entre as mulheres de “Volver” é inspirada nas conversas de Almodóvar com sua mãe, com expressões usadas pelos moradores de La Mancha. Essa e outras sutilezas não se perdem quando o filme é visto por platéias internacionais?
Carmen: Várias vezes me perguntaram se o que se passava no filme era ambientado nos anos 1950. Não. É o “pueblo” de La Mancha hoje. Para nós, é uma surpresa que “Volver”, um filme tão regional, que retrata uma Espanha profunda, tenha tanto êxito em todo o mundo. De alguma maneira, a platéia internacional percebeu a autenticidade do que procurávamos retratar. Exibir “Volver” em La Mancha foi muito emocionante. Todas as “manchegas” que foram figurantes, com seus cabelos feitos, com suas melhores roupas, pessoas nas sacadas, nas ruas. Foi um momento tão importante quanto receber o prêmio de melhor atriz em Cannes.
Valor: Penélope Cruz ensaiou durante três meses antes das filmagens começarem. E você? O processo foi o mesmo de 18 anos atrás, quando fizeram o último filme juntos?
Carmen: O que há de maravilhoso em ter 61 anos é conseguir uma segurança que não tinha quando mais jovem. Penélope [Cruz] ficava surpresa em como eu conseguia ficar tranquila no set. Não ensaiei muito com Almodóvar, apenas dois ou três dias. Quando li o roteiro e vi meu papel de fantasma, pensei: “Que papel mais estranho…Será que vou estar imersa em nuvens?” Pedro sempre nos coloca à beira do abismo. Gosto desses riscos. Voltamos a trabalhar depois de 18 anos, e naquela época não existiam estas teorias de motivação ou de ensaio. Como poderíamos segui-las se não havia tempo nem dinheiro para nada? Em “Volver” não notei nenhuma diferença em como ele me dirigia e não notei nenhuma diferença em como eu respondia como atriz.
Valor: A mescla de emoções que vemos em “Volver” é improvisação?
Carmen: Sou capaz de improvisar, mas prefiro que tudo esteja sob controle. As improvisações podem parecer brilhantes no momento em que você faz, mas não na montagem do filme. Quando um roteiro está bem escrito, faça exatamente aquilo. Nesse sentido, a televisão foi uma boa escola: pude exercitar a memória e ver minha atuação enquanto ocorria, o que nunca acontece no cinema. Foi com a televisão que me tornei popular e, isso sim, exigia improvisação: comecei a ser convidada para jantares e me colocavam ao lado de políticos…Eu não lia os jornais todos os dias…Posso fazer diferentes personagens quando estão no roteiro. E me colocavam para representar papéis sociais, sem ao menos uma orientação.
Valor: Como se sente como atriz após mais de cem filmes e tantos prêmios?
Carmen: Continuo uma mulher pré-moderna. Quando fiz a promoção de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” em países estrangeiros, as pessoas me consideravam o protótipo da mulher espanhola moderna, mas eu jamais me identifiquei com isso. Conheci os modernos por meio de Pedro e como o cinema me encantava, e sou camaleônica… Quando comecei a atuar e a frequentar este mundo, já estava casada e com filhos. Eu tinha uma vida dupla: ganhava dinheiro no teatro e na televisão e trabalhava nas loucuras de Pedro à noite ou quando terminava o trabalho. Para mim, foi uma escola genial. Aprendi tudo sobre cinema em “Pepi, Luci, Bom”.
Valor: Qual papel gostaria de fazer?
Carmen: Gosto de fazer papéis em que não me identifique na vida normal, como o de assassina. Adorei ser assassina. Mas ainda quero fazer o de “serial mother”. Alguns atores optam pela carreira porque é uma profissão muito bem paga…[risos]. Decidi ser atriz porque minha vida pessoal é um desastre. Então, talvez pudesse torná-la mais leve.
Valor: Conseguiu?
Carmen: Não. Mas há vantagens. Para fazer papel de louca, não tenho que fazer laboratório, ir a um hospital psiquiátrico. Em “Que fiz para Merecer Isto?”, a cena em que Gloria [sua personagem] golpeia o ator com um “jamón” [grande presunto] não ficava nunca no tom certo e tivemos que repeti-la inúmeras vezes. Pedro, já sem paciência, disse: “Faça como queira”. Então golpeei com força. O ator foi para o hospital, mas a cena ficou ótima.
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FONTE
Entrevista originalmente publicada no jornal Valor Econômico; Caderno Eu & Fim de Semana; São Paulo, 10-12/nov.; Ano 7, nº 320, pgs. 12-14