Por Alessandra Meleiro
A população afegã tem uma relação especial com o Irã. Há 250 anos o Afeganistão foi parte do Irã, quando dividiu a língua (farsi), a religião e uma história comum. Os afegãos são muito próximos culturalmente, além de dividir uma larga fronteira com o país. Hoje há milhões de imigrantes afegãos no Irã.
A situação no Afeganistão não é simples, já que é o resultado de muitos anos de discriminação e exploração por poderes de todo o mundo. Por muito tempo, o Afeganistão contribuiu para o tráfico de drogas, sendo o maior ‘exportador’ mundial de ópio, enquanto conservava uma imensa porcentagem da população faminta e privada de dignidade básica.
Mohsen Makhmalbaf foi o cineasta iraniano que mais se aproximou da realidade e das atrocidades que o talebã fez com o povo afegão e discutiu o Afeganistão na perspectiva cultural, política, religiosa e econômica no filme “Kandahar” (2001).
Assim nasceu o projeto do documentário “Alfabeto Afegão” (2002), que aponta a educação como único caminho para mudar a percepção das pessoas frente aos reais problemas políticos e sociais do país e para questionar a imposição de valores culturais no Afeganistão.
No ano de 2002, Makhmalbaf voltou-se inteiramente para analisar a situação do Afeganistão, mas não pela primeira vez. Em 1990, ele filmou “The Cyclist”, que resultou no livro “Buddha was not demolished in Afghanistan: It crumbled out of Shame”, dirigiu “Kandahar” e mobilizou forças para o “Movimento Educacional para as Crianças do Afeganistão”, que procura oferecer programas educacionais dentro do país e na fronteira com o Irã.
Utilizando uma câmera digital, Makhmalbaf faz a fotografia e também a voz over em “Alfabeto Afegão”. Em uma cena do filme, quando a garota afegã se recusa a tirar a burca, estamos diante de milhares de anos de tradição cultural e da reforma política que foi imposta pelo Talebã. Ela realmente escolheu usar o véu ou isto foi uma imposição social, política e cultural?
Kandahar, refugiados e exilados
Em “Kandahar” (2001), não há atores profissionais e as locações se passam na fronteira do Irã com o Afeganistão, em uma vila de refugiados afegãos. Através do filme, é possível fazer uma análise sobre a alteridade e o sentimento de nacionalismo a partir da personagem principal, Nafas. A jornalista afegã, naturalizada canadense Neloufer Pazira, ao estar longe “de casa”, consegue olhar a situação dos refugiados afegãos no Irã com o distanciamento do exílio. Percebe as discrepâncias entre os conceitos difundidos pelas milícias e o que eles produzem de fato.
Segundo Edward Said, “o exilado sabe que, num mundo secular e contingente, as pátrias são sempre provisórias. Fronteiras e barreiras, que nos fecham na segurança de um território familiar, também podem se tornar prisões e são, com freqüência, defendidas para além da razão ou da necessidade”. Assim, a pátria para Pazira assume um sentido de dogma e ortodoxia.
Pazira, ao atravessar as fronteiras que a levaram ao exílio no Canadá, rompeu barreiras do pensamento e da experiência, passando a ter uma consciência cultural de dimensões simultâneas. Assim como Makhmalbaf, ela consegue realizar um contraponto da cultura afegã com outras culturas.
Makhmalbaf, interessado há tempos em retratar a situação dos refugiados afegãos no Irã precisava para a criação de seu texto da originalidade da visão de uma exilada para o eixo de seu filme. Assim, Nafas (Neloufer Pazira), move-se no filme no contrafluxo da onda de refugiados que fogem da repressão do Talebã e assiste a uma chuva de próteses de pernas (solução improvisada para o drama de minas explosivas espalhadas pelo país) e mulheres com burcas.
Embora a dor de ser um exilado não seja muito diferente da dor de ser um refugiado, é importante ressaltar essa diferença. Pazira, na solidão do exílio, está inserida social e economicamente no novo país, apesar de estar impedida de voltar para casa. Já os refugiados que ela encontra no Afeganistão são massas de pessoas desnorteadas e sem trabalho que buscam auxílio em outros países. Práticas de banimento com origens distintas, mas que têm em comum um mesmo ethos.
Após o exílio, Pazira vive, se expressa e atua no novo ambiente (Canadá, onde vive), mas sempre tendo como pano de fundo da memória estas mesmas situações no seu país natal. Em seus ensaios sobre a catástrofe humanitária no Afeganistão ou em sua atuação no filme de Makhmalbaf, transparece a consciência de que os dois cenários são reais e acontecem simultaneamente e que um certo ethos permanece vivo no exílio. O exílio não foi uma escolha, mas deu forças para sua vocação artística.
A problemática do deslocamento aparece também em “Bashu, the Little Stranger” (1983), de Bahram Beizaie, que questiona a idéia de unidade cultural e do projeto de identidade nacional no Irã divulgada pelo regime islâmico.
A diversidade étnica, lingüística e religiosa no Irã faz com que a metade da população, de origem persa, divida o território com azaris (24%), curdos (9%), baluchis (3%), árabes (2,5%) e turcos (1,5%). Outras etnias incluem armênios e judeus, que se distinguem dos não-persas pela falta de territórios com origem ancestral e vivem dispersos pelo país.
A questão da nacionalidade durante os primeiros anos da revolução foi um grande dilema para o Estado, pois o núcleo duro da identidade cultural de cada etnia que vivia no Irã se expandia em todos os aspectos da vida individual e coletiva, pública e privada. Mas, como unificar a diversidade de identidades culturais turcomanas, árabes, baluchis, curdas e azerbaidjanes que, embora distanciados de seu território original, têm vida política, social, cultural, religiosa e lingüística próprias?
Em “Bashu, the Little Stranger”, um garoto parte da região do Golfo Pérsico (sul do Irã, onde há uma minoria étnica árabe) após sua vila ter sido bombardeada durante a guerra entre o Irã e Iraque, matando toda sua família. Ele encontra Na´i, que vive na província Gilan, no norte do país, pertencente a um outro grupo étnico que fala Gilaki, um dialeto do farsi. Nem Bashu nem Na´i são fluentes em farsi, a língua nacional do país ao qual pertencem.
Embora com diferenças étnicas e lingüísticas, eles encontram um meio de comunicação. A partir das polaridades geográficas do norte e do sul como ponto de partida, o filme introduz imagens de um país que está longe de ser uniforme. A introdução de minorias étnicas no filme, da maneira como foi colocada, ajuda a problematizar o mito de um Irã unificado lingüística, racial e culturalmente.