Por Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli*
O termo indústria associado ao audiovisual é um jargão comum e utilizado provavelmente porque os diversos segmentos de mercado que se encadeiam ou se emparelham, certamente tem como origem a produção. Todavia, ainda que se tenha um produto – a obra ou o tal conteúdo – não necessariamente a criação de uma obra audiovisual enfeixa em si um processo industrial. Industrial talvez seja uma adjetivação que se associe à expectativa econômica dos agentes que se envolvem com o audiovisual em consolidar, através da repetição da produção, uma atividade econômica forte e autossustentável.
Em verdade, os diversos elementos desta rede – que não obedece a linearidade de uma linha de montagem da indústria clássica – que compõe a economia do audiovisual, se conforma através de vínculos. Tais ligações costuram os elementos que formam a complexidade da produção do audiovisual e sua oferta e disponibilização. O cozimento se materializa em um verdadeiro mercado de licenças, autorizações, concessões, cessões, contratos; direitos, portanto. Em resumo a “indústria do audiovisual” tem como seu lado aparente o resultado da imagem difundida e, como seu suporte de fundo, o direito. O mundo do entretenimento, onde se alberga o audiovisual é o mundo dos direitos.
O Direito enquanto posto estabelece-se sob a lógica do dever ser. Portanto, não define o que é, mas como deveria ser. Deste modo, todos os pontos deste tecido que formam a economia do audiovisual subordinam-se a regras muito específicas, uma vez que seu insumo fundamental é a criação intelectual, artística, científica ou jornalística, bem como a imagem, a honra, a intimidade e a privacidade (ou renúncia a ela) das pessoas. Tais insumos são objetos imateriais protegidos constitucionalmente como direitos fundamentais da pessoa humana, decorrentes da emanação da personalidade. Lembrando que a constituição brasileira adota a dignidade da pessoa humana como seu princípio fundamental.
A economia do audiovisual brasileiro deve, portanto, subordinar-se a uma série de regras de direitos de autor e proteção da pessoa humana. É da essência destes direitos que os contratos e autorizações devem ser específicos, detalhados, preferencialmente escritos, submetendo-se a uma interpretação restritiva e sempre favorável ao titular do direito objeto de transação.
A produção de um audiovisual, mal comparando, assemelha-se a uma incorporação imobiliária, em que se construirá uma obra com diversos elementos. Cada componente deste “prédio”, todavia, é imaterial. A soma desses elementos é que produz a obra final. A liga que une esses elementos – o cimento estrutural – são os contratos. Bons contratos concretizam e solidificam uma obra. Portanto, torna-se necessário, em uma incorporação audiovisual, bons “engenheiros” que saibam fazer “argamassas” seguras, sem imperfeições ou falhas. Produzir audiovisual com segurança e valor agregado do produto significa assessorar-se juridicamente de forma eficiente.
No Brasil, além das questões jurídicas privadas, há uma interferência do Estado na indústria do audiovisual. Trata-se da Ancine – Agência Nacional do Cinema (www.ancine.gov.br), autarquia especial criada pela Medida Provisória 2228-1/2001, revisada pela Lei 10454/2002 e regulamentada por decretos ulteriores. O modelo de agências tem como origem uma visão de desestatização, através da delegação do Estado a entes com certa independência para atuar na regulação de mercados, em particular aqueles em que atuem monopólios naturais ou legais. Regular não se confunde com regulamentar as lei emanadas pelo Congresso Nacional, o que é função de detalhar as leis do Poder Executivo.
Regular é intervir em mercados nos quais haja desequilíbrios ou interesse público na gestão de monopólios naturais e bens públicos objeto de concessões. A Ancine, ainda que formatada como uma agência deveria ser entendida pelo que ela efetivamente é, ou seja, um órgão estatal de fomento a vários segmentos do audiovisual, em particular à produção, distribuição e exibição de obras audiovisuais.
Todavia, como era de se esperar, a Ancine não pode evitar sua transformação em um elemento regulamentador e de intervenção na atividade operacional das empresas privadas que orbitam em torno do objeto audiovisual em todas suas potencialidades de utilização econômica, do longa-metragem, passando pela televisão, publicidade e imagens curtas, destinadas a telefones celulares.
O convívio com um órgão estatal exige, portanto, aconselhamento específico de ordem jurídica, quer para aqueles que se beneficiam de recursos públicos de fomento – incentivos – quer para aqueles que são obrigados a se submeter às regras de controle e tributação impostas para o suporte do fomento objetivado pelo modelo de atuação estatal na economia do audiovisual.
Adicione-se aos temas acima o fato de que independente da origem dos recursos, os produtos audiovisuais são destinados ao consumo pelas pessoas. Portanto, qualquer que seja o formato de disponibilização do conteúdo audiovisual, se enfeixa nesta fruição uma relação de consumo. O Brasil detém um dos mais sofisticados Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/1990) e um atuante complexo sistema de defesa dos interesses dos consumidores. Fornecer um conteúdo audiovisual significa fornecer um produto ou serviço, o que traz responsabilidades adicionais e mais gravosas do que uma simples compra e venda civil.
A Constituição de 1988 optou no artigo 2276 pela proteção prioritária das crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8069/1990) cuida com mais detalhes sobre o tema, envolvendo desde a produção de obras audiovisuais, como a exibição e distribuição de conteúdos.
Deste modo, a economia do audiovisual, desde a produção de obras de ficção até a publicidade devem, desde a concepção inicial, atentar que a liberdade de criação, expressão e comunicação sofrem restrições relacionadas à este interesse protetivo prioritário. Na prática, o que se deve ter em mente é que a economia do audiovisual não pode se preocupar com estas inferências posteriormente, sob pena de transformar seu resultado em objeto hermético ou restrito a poucos espaços de acesso ao produto. Por outro lado, tais interesses não são impeditivos à liberdade de criação, mas o produtor deve levar em conta a vocação do que produz quando adiciona elementos que possam prejudicar a realização plena dos direitos das crianças e adolescentes.
Sinteticamente, conclui-se que:
I) o modelo da economia do audiovisual não envolve mais uma dinâmica industrial clássica, mas um padrão em formato de rede, aonde vários elementos vão se ligando em diferentes pontos do tecido do setor;
II) o produto audiovisual é formado de vários elementos, notadamente direitos intelectuais ou colaboração de pessoas titulares de direitos imateriais;
III) a ligação dos elementos intelectuais das obras audiovisuais ou dos diversos pontos da rede da economia do audiovisual se faz através de relações jurídicas, em particular de contratos, subordinados a regras específicas – direitos autorais, conexos, civis e constitucionais.
IV) os direitos envolvidos na formatação do audiovisual possuem regras interpretativas especialíssimas e requerem alta especialização dos profissionais que atuam na assessoria dos agentes participantes desta economia;
V) a economia brasileira tem a peculiaridade de ser dotada de uma Agência de fomento que exerce atividades regulamentadoras e de interferência administrativa, que requer dos agentes uma estruturação operacional específica;
VI) o audiovisual, como produção intelectual voltada à exibição, difusão ou distribuição deve se subordinar a limites impostos por leis que regulam direitos coletivos e difusos, notadamente a proteção das crianças e adolescentes bem como o direito dos consumidores.
*Trecho do artigo de Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli no livro “Cinema e Economia Política”, volume II da coleção “Indústria Cinematográfica e Audiovisual Brasileira”, uma coedição do Instituto Iniciativa Cultural e Escrituras Editora.
Foto: Cena do filme “Meu Nome Não é Johnny” (2008)