Por André Gatti
A questão da pesquisa em todas as áreas do conhecimento entre nós, trata-se de um fato de relevada importância. Entretanto, historicamente falando, é um assunto de pouca consideração e caso por partes dos setores estratégicos que integram o nosso atual processo civilizatório. E, por que não? Cultural.
Neste sentido, podemos tomar como exemplo o material documental que se encontra depositado no Arquivo Multimeios (AMM) do Centro Cultural São Paulo (CCSP). O conteúdo contempla várias áreas. Esta coleção concentra-se em destacadas facetas da vida cultural de São Paulo, fundamentalmente, mas não apenas.
Todavia, neste rico acervo se destaca a documentação colhida em torno das distintas áreas de concentração de pesquisa. Entre tantas, por exemplo, podemos citar os mais diversos materiais coletados pelas áreas dos extintos Idart e da Divisão de Pesquisa do CCSP, lá se foram mais de três décadas.
Coleções de materiais como as de teatro, artes plásticas, literatura, cinema e arquitetura ainda, com certeza, falarão para muitas gerações. De um tempo que não volta, mas que deixou um legado de um período muito rico e importante da nossa maltratada história cultural cujo material disponível é a única prova de
nossa existência.
Por sua vez, o acervo de cinema depositado no AMM é muito rico, pois dispõe de uma plêiade de material somente encontrada nos melhores arquivos brasileiros. O material lá contido serviu de suporte para o presente trabalho. O memorial descritivo dos materiais tombados no AMM comprova isto de maneira inequívoca.
Entretanto em contato com o material em si, senti-me como adentrando num lugar onde o profano e o sagrado se misturavam. Parecia que me encontrava numa espécie de sarcófago de um cinema que sempre lutou para preservar sua memória.
Inequivocadamente, lá estão depoimentos das mais importantes figuras do cinema paulistano dos anos áureos da pornochanchada e do cinema brasileiro como um todo. Confrontando este material por onde desfilam em fotos, depoimentos, notícias, cartazes, press-releases e tantos outros, nomes do ciclo da Boca do Lixo e do cinema de São Paulo das décadas de 1970 e 1980, principalmente.
É possível se defrontar com figuras como: Oswaldo Massaini, Antonio Pólo Galante, Oswaldo de Oliveira, Matilde Mastrangi, Helena Ramos, David Cardoso, Dante Ancona Lopez, Walter Hugo Khoury, Alexandre Sandy, Alfredo Palácios entre tantos.
A partir desta galeria de ícones do cinema nacional, criou-se uma espécie de
imaginário da Boca do Lixo, com seus personagens típicos. A experiência cinematográfica desenvolvida no famoso quadrilátero do bairro da Estação da Luz é um fato atípico na trajetória do subdesenvolvido cinema brasileiro.
Neste local a distribuição floresceu como não se tinha visto anteriormente. Talvez, nunca o cinema brasileiro não tenha sido tão subdesenvolvido e tão desenvolvido ao mesmo tempo, grande contradição pouco discutida entre os pesquisadores.
Afinal, praticamente, algo entre 30 e 40% dos filmes realizados lá foram produzidos. Isto quando os dígitos de produção eram da ordem de 3 algarismos. Trata-se de um pólo de produção que deve desafiar a imaginação dos mais imaginosos que não tiveram a oportunidade de presenciar tal situação.
Hoje, creio que seria impossível de se reproduzir tal ambiente. Não se trata de defender um cinema dito como mal feito, pelos seus detratores, e visto como obra de arte, pelos seus defensores. De qualquer maneira, esta curiosa mistura de produtores, distribuidores, atores, atrizes e candidata (o)s a, proxenetas, prostitutas, cafetões e arrivistas de toda ordem, creio, jamais se reproduzirá.
Curiosos seres cinemáticos que campeavam pela Boca do Lixo em busca do pote de ouro no fim do arco-íris. Verdadeira Mecca do cinema brasileiro, a Boca do Lixo abrigou amazonenses, potiguares, catarinenses, espanhóis, libaneses, gaúchos, portugueses, cearenses, paulistas, cariocas, italianos, judeus, cristãos, muçulmanos e muito mais.
Um caldeirão cultural que raramente foi visto em outras épocas, caracterizou-se como local muito peculiar na trajetória da cultura brasileira. Os historiadores que se debruçaram sobre este período, infelizmente, até o presente momento, não tiveram a grandeza de enxergar o desenvolvimento daquela produção sob a visão de que se tratava de um período transitório e de acomodação do Brasil.
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