Documentário como memória e resistência

Documentário como memória e resistência

 

Por Joana Simões Piedade

Pedro Pimenta, produtor de cinema, criador-fazedor do Festival do Filme Documentário de Maputo, o Dockanema, é a energia “mais ou menos solitária”, que há cinco anos consecutivos rasga com esforço, obstinação e afecto uma janela para o mundo a partir da capital moçambicana.

A 5ª edição decorreu de 10 a 19 de Setembro e, durante dez intensos dias, o público teve a oportunidade de assistir a documentários que, mais do que descrever as realidades do mundo contemporâneo, abrem lugar a que essas vivências encontrem por esses dias em Maputo, espaço e tempo para serem questionadas e perspectivadas com olhos no futuro.

A semana do evento é o resultado de um “trabalho de formiga” construído por Pedro Pimenta ao longo de todo o ano. O produtor desdobra-se em participações por festivais internacionais, analisa propostas directas de cineastas que querem marcar presença em Maputo, recebe conselhos e sugestões de uma rede internacional de contactos, que a sua experiência profissional de largos anos lhe permitiu acumular. No final, todas estas forças se combinam para que o resultado seja uma programação de reconhecido nível.

Este ano, a mostra de 80 documentários provenientes de todos os continentes procurou, muito para além de dar respostas, provocar questões. “Vivemos no mundo onde está tudo estruturado para que não tenhamos memória. Em relação às nossas estórias e à nossa História, como sociedade, temos a obrigação de exercer constantemente esse dever de memória. Somos a nossa memória, sem memória passamos a não saber para onde caminhamos, sem rumo, como zombies”, defende Pedro Pimenta.

A convicta recusa ao esquecimento, Pedro Pimenta transforma-a num contributo pessoal e profissional que surge anualmente nas telas de cinema que se acendem em simultâneo em várias salas da baixa de Maputo. Do Teatro Avenida (sede do grupo teatral Mutumbela Gogo) ao Teatro Scala (sala imponente votada praticamente ao abandono durante o resto do ano), do Centro Cultural Brasil-Moçambique (este ano sede do evento) ao Cine-Teatro Gilberto-Mendes, passando pelo anfiteatro da Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane, são estes locais que servem, e dos quais o Dockanema se serve, para executar a preservação da tal memória colectiva.

Provocar o público

Em exibição estiveram vários olhares, de outros tantos cineastas, expondo o tal “cinema-verdade”, a designação atribuída a experiências cinematográficas como em Crônica de Um Verão, de Jean Rouch e Edgar Morin, e que o soviético Dziga Vertov dava ao próprio género do documentário, aludindo ao maior rigor que o “olho da câmera” teria por comparação ao olho humano.

A abrir, no primeiro dia de festival, centenas de pessoas assistiram ao premiado documentário 48 da realizadora portuguesa, Susana de Sousa Dias. Neste documento magistral, perturbador e emocional, a realizadora parte de um conjunto de fotografias de cadastro de presos políticos da ditadura portuguesa complementadas com depoimentos dos próprios retratados, numa procura de “mostrar os mecanismos através dos quais um sistema autoritário se tentou auto-perpetuar, durante 48 anos (1926-1974)”.

Esta escolha de Pedro Pimenta para abertura do festival reflecte a visão do produtor sobre o seu conceito pessoal do documentário. “O filme de abertura do Dockanema tem de cumprir em pleno a questão da arte cinematográfica. É o momento em que marcamos o tom da característica essencial deste festival, como sendo uma iniciativa que tem de privilegiar o documentário na sua forma mais de vanguarda, tanto em termos de linguagem, como na capacidade de nos perturbar e provocar enquanto espectadores”, diz. O impacto que o documentário, parcialmente realizado em Moçambique, teve no público do festival foi, segundo Susana de Sousa Dias, “muito interessante e comprovo isso mesmo através dos comentários e e-mails de pessoas que me contactaram. Houve inclusive uma pessoa que me enviou materiais sobre presos políticos da PIDE em Moçambique”, contou a cineasta.

Olhar África

Dividido por várias secções, o festival ofereceu um olhar plural, diversificado e privilegiado sobre o continente africano. Podemos referir alguns documentários, meramente exemplificativos, como a A Cidade dos Mortos de Sérgio Tréfaut, que conta o quotidiano um cemitério no Cairo onde, lado a lado com as sepulturas, vivem cerca de um milhão de pessoas. Ou a incursão nos bairros periféricos de Maputo, feita por Marco Pasquini em Maputo Dancing Dump, que nos mostra como na Lixeira do Hulene, um grupo de jovens procura sobreviver a um quotidiano de aparente desesperança, refugiando-se na música. A urbanidade dos ritmos africanos esteve ainda presente em Kinshasa Symphony dos alemães Martin Baer e Claus Wishamann, documentário em que nos é oferecido um exemplo de resistência de homens e mulheres em prol da arte, através de sons de violinos, flautas, contrabaixos e vozes congolesas em forma de orquestra sinfónica, que se sobrepõe aos apitos de buzina de candongueiros e ruídos próprios de um musseque de Kinshasa.

Anne Aghion, outra das realizadoras convidadas, vencedora, entre outros, do Grande Prémio de Cannes, esteve em Maputo para leccionar uma masterclass no Instituto Franco-Moçambicano, após exibição do seu filme My Neighbour, My Killer sobre a questão dos tribunais de reconciliação criados no Ruanda após o massacre entre tutsis e hutus, filmados durante um período de 10 anos pela lente da cineasta.

Alavanca do cinema nacional

Para os cineastas moçambicanos, os cinco anos de Dockanema revestem-se de grande importância. Isabel Noronha, uma das mais importantes e activas cineastas do país, acredita que “o Dockanema inaugurou uma era na qual nós, cineastas moçambicanos, começámos a poder mostrar os nossos filmes a um público mais alargado, e também a ter a possibilidade de vermos os filmes uns dos outros e aqueles que se fazem noutros locais. Tudo isto é muito importante em termos de reflexão daquilo que nós próprios fazemos”. A cineasta esteve presente na mostra deste ano com dois filmes de sua autoria, Maciene sobre uma cooperativa de artesãos numa pequena comunidade e Salani, um documentário (em co-autoria com Vivian Altman) que recorre à animação para contar as dramáticas estórias de crianças vendidas pelos pais e traficadas para a África do Sul, onde são vítimas de abusos vários.

No total, este ano foram exibidos cerca de 20 documentários moçambicanos, entre cineastas consagrados e jovens “que dão os primeiros passos nesta arte e que materializam a aspiração do Festival em incentivar a produção de filmes em Moçambique”. Efectivamente, foram exibidos cinco filmes realizados no âmbito de uma oficina durante 6 meses – o NOMADLAB, que o Dockanema promoveu o ano passado, mas que por falta de recursos não foi possível realizar novamente este ano.

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Um dos filmes moçambicanos em destaque foi A ponte: história do ferryboat Bagamoyo, de Diana Manhiça, e que conta a história do ferryboat que nos últimos 37 anos faz a ligação diária entre a cidade de Maputo e Catembe, atravessando a baía. Este filme teve a particularidade de ter sido exibido ao ar livre na Catembe, “obrigando” o público que estivesse em Maputo a deslocar-se nesse mesmo ferry, fazendo da travessia um momento de comunhão do público com a realidade apresentada no próprio documentário. Esta foi também uma forma de descentralizar o acesso ao cinema documental do “gueto de cimento” da baixa de Maputo para as zonas mais periféricas da cidade.

Festival pós-greve

O Dockanema deste ano aconteceu na semana subsequente às manifestações a 1 e 2 de Setembro, contra o aumento dos preços de alguns bens essenciais. Naqueles dias, a população residente nos bairros da periferia de Maputo saiu à rua, tendo a resposta da polícia resultado na morte de um número incerto de manifestantes. Esta situação, ainda muito presente na vida da cidade e nas conversas do quotidiano foi, como seria de esperar, alvo de reflexão e comentários durante o festival de cinema.

“As greves da semana passada são algo há muito esperado. Não é possível manter uma situação de pobreza tão acentuada de uma classe social, que se depara todos os dias com a riqueza crescente de uma outra classe social, sem que isso suscite revolta e que a revolta se expresse pelos meios em que é possível acontecer”, considera Isabel Noronha. Para a cineasta e socióloga, “o que é importante ressalvar nessa situação é a ausência da palavra.

Foram manifestações em que aquilo que está dentro das pessoas saiu directamente para os gestos (queima de pneus, bloqueio de estradas). Isso é sintomático de que a palavra está tão amordaçada, por tanto tempo, que morre. E quando a palavra morre e o que sobrevive é o gesto, é difícil iniciar um diálogo”. Neste contexto, em qualquer iniciativa de cariz cultural pode nascer a reflexão e a procura pelo renascimento da palavra. “A cultura é um lugar onde a palavra normalmente emerge, e ganha expressão. Creio que a cultura tem um papel determinante em fazer emergir sentimentos em palavra, em imagem, antes que se transforme em gesto. Uma das razões pela qual a palavra amordaçada morre é também porque a cultura está, de certa forma, dentro desta mordaça. Muitas vezes, os governos só acordam para os perigos dos silêncios criados à força, quando os gestos se tornam agressivos”, conclui Isabel Noronha.

Ver e falar cinema

Uma das novidades deste ano do Dockanema foi a realização de um simpósio “Para uma História do Cinema em Moçambique”, com o tema “Globalidade versus identidade: reflexões sobre a sua génese, contexto e influência para o entendimento do cinema contemporâneo”. Para tal reuniu-se um conjunto de investigadores especializados em temas relacionados com a imagem, a história e a produção de cinema em Moçambique, com contribuições provenientes de vários países.

Guido Convents, da Bélgica, procurou analisar os primórdios do cinema moçambicano, desenvolvendo uma intervenção sobre as imagens em movimento numa perspectiva histórica, económica, política e de propaganda. Do Brasil veio Alessandra Meleiro mostrar experiências de publicação de pesquisas sobre diversas cinematografias em vários pontos do mundo e possibilidades de viabilização de um projecto semelhante em Moçambique. Por seu lado, a investigadora Ros Gray, do Reino Unido, apresentou um trabalho sobre a forma como o cinema em Moçambique gerou conceitos, estéticas e estratégias novas. De Portugal, estiveram presentes Sílvia Vieira e Bruno Silva do Centro de Investigação em Arte e Comunicação da Universidade do Algarve, autores do documentário Assim Estamos Livres, sobre o cinema de ficção em Moçambique, de 1975 a 2010. E ainda a investigadora Catarina Simão, que apresentou o projecto “Fora de Campo” sobre o Arquivo de Cinema de Moçambique.

A iniciativa combinou no mesmo espaço investigadores, realizadores, produtores e estudantes universitários. “Behind The Lines” (1971), de Margaret Dickinson, realizado nas zonas libertadas da FRELIMO, e que retrata a luta armada contra o regime colonial português em Moçambique, foi um dos destaques desta iniciativa.

“Acho que o simpósio foi um momento de viragem em algumas coisas. Enquanto cineastas temos algumas dificuldades relativamente ao contexto geral de produção de cultura do país, uma vez que o cinema é relegado para um plano de não existência e isso faz com que sintamos alguma solidão naquilo que fazemos”, avaliou Isabel Noronha, defendo ainda que “pela primeira vez, aqui, tivemos a possibilidade de ver que historiadores, antropólogos, e outros realizadores se interessam pelo nosso trabalho e que os nossos trabalhos suscitam outros trabalhos, curiosidade, reflexões. Isto dá-nos uma noção da importância do que fazemos não só para a cinematografia moçambicana como para a internacional”.

Fora dos ecrãs/telas

É neste intercâmbio que Pedro Pimenta vê a própria génese subjacente ao Dockanema tal como o concebeu há cinco anos: uma tentativa de criar um espaço onde, no confronto com os trabalhos feitos entre cineastas nacionais e internacionais, e com convidados que vêm de outras experiências e parâmetros, haja ao fim de algum tempo, um verdadeiro impacto na reflexão do debate, na crítica construtiva, e sobretudo na inventariação de soluções positivas.

Mas não é apenas nas salas de exibição de filmes e nos anfiteatros da universidade que o Dockanema acontece. O festival desenrola-se também antes e depois das sessões, no anoitecer de Maputo, nas conversas em redor de uma cerveja Laurentina numa mesa do bem simpático espaço do Instituto Franco-Moçambicano ao som de um Tom Jobim revisitado através dos instrumentos da banda nacional TP50, nos táxis a caminho do hotel, nos restaurantes ao jantar onde, a par da discussão sobre os documentários exibidos naquele dia, fala-se sobre a indústria cinematográfica em geral, e também das “tricas” do sector, semelhantes entre si nas diferentes geografias.

Mas também se comenta a beleza ímpar da baía de Maputo, as cores quentes das capulanas enroladas nos corpos das moçambicanas, o artesanato irresistível do Mercado do Pau, a vida do Mercado Central, a batida pujante dos ritmos locais que se ouviu na véspera no café-bar Gil Vicente, a passagem “exótica” pela Rua Bagamoyo, de arquitectura colonial em decadência e zona do Red Light District da capital, ou o pé de dança executado no bar da magnífica estação de caminhos de ferro (eleita pela revista Newsweek como uma das 10 mais bonitas do mundo). Porque para contar a realidade do mundo é preciso vivê-la.

Elevar patamares

É preciso dizer que desde a primeira hora, e já lá vão cinco anos, o Dockanema é realizado sem qualquer apoio das entidades públicas moçambicanas. Este ano, contudo, houve a promessa por parte do Governo de uma ajuda futura, facto que Pedro Pimenta registra e aguarda que a promessa dê lugar ao compromisso. O produtor admite que maior apoio permitiria fazer evoluir o festival de um “festival simpático, que todo o mundo gosta” para “patamares mais interessantes e mais profissionais”, aproveitando o reconhecimento internacional que a iniciativa tem vindo a granjear além-fronteiras.

Para isso, o director avança a necessidade de profissionalizar a estrutura do festival, organizado de forma “um tanto frágil, com poucos recursos e apoios diminutos, que surgem no último momento e dificultam o muito necessário planear a longo prazo”. E dá um exemplo simples: “cinco anos depois, não podemos estar confrontados com a necessidade de ter de ser um festival de cinema a montar equipamentos para que possa haver projecções em salas que, durante o resto do ano, estão fechadas. É necessário nos apetrecharmos melhor, não só para a melhoria do festival mas para as pessoas encararem o cinema como uma actividade regular no meio das suas vidas. O Dockanema não pode ser a excepção à regra de que não se vê cinema de qualidade em Moçambique”.

Apesar das dificuldades, a existência do festival tem provocado alguns ecos positivos no panorama da cidade: mais ciclos de cinema, a criação do cine-clube Komba Kanema, a maior envolvência da Universidade Eduardo Mondlane nos assuntos do cinema e a difusão de obras cinematográficas de vez em quando. “Creio que gradualmente há uma alteração de atitude. As pessoas deram-se conta de que apesar de todas as dificuldades que temos neste país, é possível fazerem-se coisas com determinado padrão de qualidade. A mediocridade não pode ser traduzida e explicada só e apenas pela ausência de recursos. É possível fazer melhor com o pouco que temos”. E é quando Pedro Pimenta coloca as suas próprias palavras em acção que o Dockanema acontece.

Veja também o artigo “Um outro começo“, de Clarisse Goulart e Alessandra Meleiro, publicado na Revista Reserva Cultural, n. 10, 2011, pp. 64-67, Editora Lazuli, São Paulo.


FONTE
Buala
Data de publicação: 27 de setembro de 2010
Link direto: http://bit.ly/gDcSAG
Foto 1: Cena do filme “A ponte – História do Ferryboat Bagamoyo”, de Diana Manhiça
Foto 2: Cena do filme “Mafalala Blues”, de Camila de Sousa