Por Alessandra Meleiro
Kátia Coelho iniciou sua carreira cinematográfica em 1983 como assistente de câmera, tendo trabalhado em 19 filmes como primeira assistente. Exerceu a função de Direção de Fotografia em 20 curtas e dois longas: “Casamento de Louise”, de Betse de Paula (2001) e “Tônica Dominante”, de Lina Chamie (2000), que recebeu o 2º lugar de Melhor Fotografia no ‘Kodak Vision Award’. Atualmente é professora de Direção de Fotografia da ECA/ USP.
Você acaba de ganhar o 2º lugar no Kodak Vision Award, que premia as mulheres do cinema no mundo inteiro com a fotografia de “Tônica Dominante”. O que significou esse prêmio?
Uma pessoa do Kodak Vision Award, através do longa da Lina, me convidou para participar desse prêmio e depois eu recebi um e-mail sendo informada do 2º lugar. Uma coisa legal é você perceber que você existe no mundo, que cinema é uma linguagem universal. O próprio filme da Lina, por ser um filme de poucas palavras, é muito universal. Foi bacana essa sensação de você estar dentro do mundo. Para mim, que sou uma pessoa muito introspectiva, é muito bacana saber que você se comunica sem estar presente.
Como foi trabalhar com a Lina Chamie em “Tônica Dominante”?
Trabalhar com a Lina é um presente para um Diretor de Fotografia. Primeiro porque a Lina é uma pessoa fácil de trabalhar. É uma pessoa exigente, ela exige uma qualidade de toda a equipe que é bacana, que resulta num filme super-profissional. O “Tônica Dominante” teve um orçamento de R$ 500.000,00 ou seja, U$ 250.000,00 e foi rodado em 3 ½ semanas, que é muito rápido para um longa, então é muito bom trabalhar com a Lina porque ela sabe muito bem o que quer. O filme é sobre música e imagem, praticamente. O filme é muito sensorial porque é baseado na imagem e na música. Tem um roteiro simples – eu acho o roteiro muito bonito -, porque na verdade é um roteiro sobre a construção da arte e sobre o encontro do amor, que eu acho que é um desejo comum a todos os seres humanos: o desejo da beleza, do envolvimento, não só a beleza física, da beleza como um todo, da estética. Então este tipo de roteiro, que trabalha muito na abstração, na abstração do pensamento, na percepção dos sentimentos é muito bom para um diretor de fotografia porque você tem que entrar numa sincronicidade. A gente busca estar em sintonia com o invisível do Diretor.
Dá para perceber na tela o encontro de dois olhares femininos…
Foi um encontro do olhar de duas mulheres. A Lina é uma musicista (ela não é mais uma musicista) mas desde criança ela tinha esse vínculo com a música clássica que na minha opinião é a forma mais abstrata de percepção, porque você trabalha com a imaginação ouvindo uma música, você não tem outros dados como a palavra ou a imagem, então eu sinto como uma percepção feminina porque são duas mulheres. Mas é claro, se estivesse o Pedro Farkas fotografando, pegando uma pessoa que eu conheço bem, com que eu trabalhei bastante, que trabalha muito com a percepção dos roteiros, teria só uma outra fotografia, mas teria o olhar da diretora também, porque o importante na Direção de Fotografia é você estar vinculado ao roteiro, vinculado à estória do roteiro, e no caso da Lina é um olhar especial mesmo porque é um filme voltado para a poesia e para a música, então a imagem tem que estar nesta mesma sintonia.
E o trabalho com a Direção de Arte em “Tônica Dominante”?
O trabalho no “Tônica Dominante” foi muito em conjunto e vinculado à Lina mesmo, à direção. A Lina era nosso maestro. Assim como o maestro (o personagem do Carlos Gregório) conduz a estória no filme, a Lina conduzia toda a equipe nesta mesma estória, tanto a fotografia quanto a Direção de Arte da Ana Abreu, quanto o Paulo Sacramento na montagem. Nós estávamos em sintonia o tempo todo. A gente tinha aquela estória muito próxima da gente, e o trabalho da Direção de Arte começou na pré-produção e nós tínhamos muitas referências de cor. Fizemos testes de cor pois o filme é dividido em três cores. Eu acho que é uma divisão sutil: o azul, o vermelho e o dourado. Todas essas cores, a gente teve muito discussão em cima de cada um desses episódios. A gente fez teste de cor na parede, a gente fez testes filmados de cores de figurino, da cor da cortina do segundo episódio, qual o vermelho que seria mais interessante. Começamos com um vinho escuro e acabou com um vermelho forte mesmo, a gente foi mudando de acordo com os testes filmados. Pensamos bastante na imagem do filme e imagem não é só fotografia, imagem é a conversa toda com a direção, com a gramática do filme e com a direção de Arte e a própria montagem do filme, que é toda feita em cima da música. Filmávamos com partitura. A Lina dirigia todas as cenas com partitura, toda a parte de música, todos os planos e também a montagem. É um filme muito especial de linguagem, acho que ele é um presente para a imagem, para a Direção de Arte.
As fusões parecem ter sido muito importantes na execução da ‘partitura’ visual. Como foram feitas as fusões?
É o olhar delicado da Lina mesmo, que a gente absorveu o melhor possível. O filme tem muitas fusões, aproximadamente 53. Isso inicialmente seria feito em trucagem, mas trucagem é muito cara, tem que se fazer master, o que era inviável num orçamento de R$ 500.000,00. Então, aproveitamos que no fim de 1999 chegou um equipamento de copiagem no laboratório Curt & Alex, em que era possível fazer as trucagens na montagem de negativo A e B. Ate então este tipo de trabalho só era possível de se fazer aqui no Brasil em 16mm. Em 35 mm era na própria truca mesmo. Todas as fusões foram pensadas na pré-produção, por causa do baixo orçamento do filme. Em alguns casos era impossível fazer a copiagem A e B por causa do tempo, porque o tempo da fusão na montagem A e B é limitado pelo número de quadros, então temos no filme uma trucagem que foi feita realmente na truca. Foi feita pelo Wanderley, com vários testes também, e ficou perfeita: é justamente a trucagem maior das partituras que se fundem no plano do maestro, da orquestra numa partitura na sala de ensaios. Ai é uma trucagem de 1 minuto e meio. Era impossível fazer em A e B.
A gente fez uma outra trucagem na parte dos planos do piano, uma sobreposição de notas musicais em cima de um plano sequência na segunda estória. Também foi uma truca feita no Brasil, um mar de notinhas. Eu gosto bastante…
Como você se relaciona com outros Diretores de Fotografia?
Agora com a ABC eu estou achando divertindo estar em contato com as pessoas. A ABC é um presente. Faz só um mês que eu virei uma internauta fanática, fico toda hora vendo os recados da ABC. A própria sugestão de livros do Carlos Garofallo eu imediatamente adquiri o livro, eu estou achando muito bacana. Eu não sabia que eu sentia essa falta (eu não tinha essa consciência) mas sinto muita, porque quando eu era assistente de câmera eu tinha contato com muitos fotógrafos, agora como DF eu acabo tendo contato com aqueles que são meus amigos pessoais e é pouco o contato. Eu estou naquele processo de deslumbramento com a ABC.
O filme “Tônica Dominante” para mim, por ser tão sensorial, lembra muito o cinema iraniano, principalmente “O Silêncio” e “Gabbeh” de Mohsen Makhmalbaf, respectivamente filmes sobre o som e as cores. Existe algum filme iraniano que é referência para você?
Sobre a fotografia dos filmes iranianos, não tem nenhum que me chame a atenção. Mas os filmes sim. Os filmes da Samira Makhmalbaf, tanto o Quadro Negro quanto A Maçã, são filmes que eu gostaria de ter feito. Na verdade é uma diretora que eu me identifico sem conhecer. O “Tônica Dominante” para mim tem muito isso. Acho que se eu visse o “Tônica Dominante” no cinema eu pensaria isso: “puxa, eu queria ter feito esse filme”.
Porque você resolveu fazer fotografia de cinema?
Eu resolvi fazer fotografia de cinema porque eu assistia o Canal 100, eu achava aquela fotografia muito bonita. Então eu achava isso: eu quero fazer fotografia de futebol, e acabei jogando futebol quando eu estudava na ECA, eu ficava fotografando o tempo todo, eu jogava no Corinthians feminino. Mas eu comecei a fazer cinema por causa do Canal 100, era tão bonito, câmera lenta, aquela coisa tão real. Você não vê ninguem em câmera lenta. A fotografia é capaz de coisas que não existem na realidade, como uma pintura, é capaz de colocar o imaginário irreal dentro da realidade.
E quais são tuas referências de imagem na pintura?
Uma referência infantil de um quadro que eu sempre quis ver, porque minha mãe colecionava “Os Gênios da Pintura”, é “O Grito” do Edvard Munch, que eu acho um quadro maravilhoso. Também quem não gosta de Van Gogh, quem não gosta de Gauguin? É fundamental! Cada filme que você faz você procura uma referência de imagem, pra você poder trabalhar naquele universo. Para poder falar a mesma língua do Diretor e do Diretor de Arte. No “Tônica Dominante” a gente assistia muito “A Liberdade é Azul” do Kieslowski. A Diretora de Arte apresentou umas pinturas japonesas. Pintura é fundamental. Com os meus alunos eu procuro que isso aconteça. Que quando me vem na cabeça uma forma de representação na pintura, que se torne referência de imagem em cima do roteiro. Estudar Vermeer, Gauguin e outros, segundo o roteiro que se apresenta.
Você tem que ter a imaginação a mais livre possível. Mas isso não existe muito, porque quase tudo é cópia… Só Deus que inventou o mundo não copiou. Na hora em que o Munch pintou o “O Grito” ele tem aquilo no imaginário dele. Naquele momento faz parte da realidade dele, mesmo que seja inconsciente e invisível. O Hopper traduz muito o mundo visível com sentimentos.
O invisível não está em todos os filmes?
Acho que o invisível está em alguns filmes, em outros não. Ele está quando a gente fala “puxa, esse filme eu gostaria de ter feito”. Talvez você tenha necessidades maiores para fazer esse filme. Geralmente as coisas que eu gosto são muito sensoriais. O que eu procuro como leitura de mundo, um livro que eu gosto muito é “Em busca do tempo perdido” do Proust, que é um livro que eu não consigo acabar de ler, porque eu não consigo sair do lugar. Pra mim cada frase dele é um presente também, porque é um livro muito baseado na percepção. Cada frase do livro ele transforma: Um chá é transformado num acontecimento, num acontecimento justamente da sensação. É tudo mágico, magia pura.
Eu tenho muita dificuldade em ler. O Torero (José Roberto) me fez encontrar o meu caminho de leitura. Como o Torero é um escritor, os livros dele são presentes, presentes que eu ganho. E eu comecei a me cobrar muito… A minha leitura é sempre visual. Tem alguns livros pra mim que são base: “Em busca do tempo perdido” é um livro básico da minha formação visual com as palavras, porque é muito sensorial, é muito imagem, essa magia da imagem. Uma coisa simples como um chá, uma madalena, vira tudo… Eu estou lendo também “Imagens do Inconsciente” da Nise da Silveira. Acho que eu procuro o mundo irreal, e o cinema é tão irreal, com mundos tão diferentes. Cada diretor te apresenta um universo, uma estória, especialmente no Brasil e no Irã, que têm cinemas autorais.
Filmografia Sumária
Kyrie ou o Inicio do Caos – Dir. Debora Waldman
Melhor Fotografia – Festival de Brasília/ 1998 – Festival de Recife/1998
Eu sei que você sabe – Dir. Lina Chamie
Melhor Fotografia – Festival de Brasília/1995
Nelson – Dir. Carlos Cortez
Melhor Fotografia – Festival de Cuiabá/1997
That’s A Lero Lero – Dir. Lírio Ferreira
Melhor Fotografia -Festival de Brasília/1995 – Festival de Gramado/1995 – Festival de Cuiabá/1996
Rio de Janeiro – Minas- Dir. Marili Bezerra
Melhor Fotografia – Prêmio Cine Clube Banco do Brasil/1994 – Festival do Maranhão/1995
Carlota Amorosidades – Dir. Adilson Ruiz
Melhor Fotografia – Festival de Gramado