Por Sabrina Nudeliman e Daniela Pfeiffer*
Até meados da década de 50, a única opção disponível de consumo audiovisual eram as salas de cinema. No Brasil, esse meio de exibição possuía grande força junto ao público. No ano de 1975, precisamente, o país chegou a ter 3.276 salas de exibição, número que caiu para 1.250 em 1993, devido às transformações ocorridas na dinâmica do mercado cinematográfico e nos hábitos socioculturais. Hoje, o Brasil dispõe de aproximadamente 2.120 salas de cinema, as quais estão distribuídas em menos de 8% dos municípios do país.
A primeira grande transformação do mercado de exibição e consumo de audiovisual se deu a partir de meados da década de 80. Foi nesse período que os cinemas de rua começaram a fechar definitivamente suas portas, resultando na transferência das salas de exibição para os novos shoppings que estavam sendo construídos nos centros urbanos. O cinema, ao se transferir para as novas ilhas de consumo e optar por ingressos de preço alto para os antigos padrões do país, solidificou assim o processo de elitização de seu público (Almeida & Butcher, 2003, p. 59).
A transferência das salas de rua para os shoppings acabou excluindo grande parcela da população, que foi ficando cada vez mais distante do audiovisual em virtude de entraves geográficos, econômicos e culturais. Isso não significou, no entanto, uma separação definitiva entre o audiovisual nacional independente e seu público.
O surgimento do homevideo, ainda na década de 80, apresentou-se como uma opção mais popular de entretenimento audiovisual, por possibilitar o acesso a um valor significativamente inferior ao dos cinemas de shopping, fortalecendo ainda os hábitos caseiros de entretenimento. Nesse processo, a televisão aberta também ocupou um espaço relevante, ao oferecer de maneira gratuita uma farta e variada programação, com destaque para a fórmula das telenovelas.
Os meios tradicionais ainda se destacam enquanto opção de consumo audiovisual, no entanto, hoje eles convivem com outras formas de veiculação de conteúdo: as novas mídias. Genericamente, o termo refere-se a qualquer mídia que utiliza como meio um computador ou equipamento digital para produzir, transmitir ou exibir conteúdos audiovisuais. A internet foi fundamental neste processo, possibilitando a criação de novas janelas para transmissão de conteúdo. Como exemplo, podemos citar vídeos exibidos em celulares e aparelhos portáteis, o cinema digital, a TV digital, entre outros.
A variedade em opções de janelas de exibição conflui para uma reflexão sobre o perfil e a heterogeneidade do conteúdo produzido, bem como sobre os diferentes públicos que se formam. A convergência é fundamental nesse processo, uma vez que um mesmo conteúdo pode ser exibido no cinema, na TV, no homevideo e na internet, em diferentes intervalos temporais, ou mesmo simultaneamente. O surgimento das novas mídias aponta, portanto, para uma alteração significativa nas características da indústria cinematográfica e do audiovisual, e para uma possibilidade real de democratização da produção e do consumo de vídeos.
Neste capítulo, pretendemos abordar a internet e as novas mídias como alternativas para a distribuição e a exibição da produção independente, bem como a nova experiência de consumo audiovisual decorrente desse processo para o público brasileiro. Para tanto, num primeiro momento, será apresentado um panorama do mercado de novas mídias para que se possa analisar os hábitos e o perfil do consumidor de audiovisual frente ao novo cenário que se constrói. Em seguida, discorreremos acerca da oferta e das características da produção audiovisual independente que vem sendo realizada no país. Finalmente, sugerimos algumas questões para um aprofundamento posterior, considerando que o objeto deste capítulo constitui um campo abrangente e em permanente transformação.
Conteúdo on-demand
As mudanças tecnológicas trouxeram uma transformação significativa nos hábitos de consumo, as quais coincidiram com mudanças no cenário da comunicação. A principal consequência das novas mídias, enquanto meios de transmissão de conteúdo audiovisual, está, portanto, na liberdade de escolha desse conteúdo pelos usuários. Para Luchetti, “a diferença, agora, é que as tecnologias, especialmente os protocolos com base em internet (IPTV), permitem que o usuário escolha e assista ao que quer, na hora em que deseja.” (Luchetti, 2008, p. 58).
Tal diferença, resulta na opção, cada vez mais corrente, por novos meios de consumo e acesso a vídeos. Segundo pesquisa Datafolha encomendada pelo SEDCMRJ (Sindicato das Empresas Distribuidoras Cinematográficas do Município do Rio de Janeiro), e publicada em 2008, para conhecer os hábitos socioculturais dos brasileiros, assistir a DVD em casa constitui-se a atividade de lazer predileta, representando 20% do total. A segunda atividade de maior apelo entre os entrevistados é assistir à TV aberta (14%), enquanto o cinema ficou em terceiro lugar, com 8%. As atividades relacionadas ao audiovisual abarcam, assim, mais de 40% da preferência por formas de entretenimento, e a maneira como esses produtos são consumidos aponta que o público de audiovisual está majoritariamente em casa.
Enquanto os hábitos de consumo audiovisual crescem em possibilidades, é preciso levar em conta também que tipo de conteúdo o público brasileiro tem buscado nos meios de entretenimento. Sucessos nacionais recentes de bilheteria, bem como o apelo que as telenovelas possuem junto ao público, apontam para a existência de uma demanda real, e significativa, por conteúdo audiovisual nacional.
Nesse cenário, no entanto, há que se levar em consideração algumas especificidades próprias ao funcionamento do mercado audiovisual, as quais acabam sendo determinantes para a configuração dessa indústria. O alto preço do ingresso nas salas de cinema, a concorrência com o produto norte-americano e as limitações impostas pelas grandes redes de TV aberta, são exemplos de fatores que acabam limitando a circulação da produção independente e, consequentemente, prejudicando seu acesso. De forma que, muitas vezes, o público encontra dificuldades para assistir à produção independente realizada no país, quando e como quiser.
O mercado de vídeo on-line surge para solucionar, em parte, essa problemática, ao sinalizar possibilidades concretas de democratização do acesso. Mais do que isso, as novas mídias contribuíram para modificar a relação entre os vídeos e o consumidor final, que passou a ter à sua disposição uma farta oferta de conteúdo de nicho e on-demand. Para Luchetti, o posicionamento do espectador é determinante na nova configuração do cenário audiovisual.
“A verdade é que a televisão convencional, um meio historicamente passivo, que sempre ofereceu conforto e familiaridade, com a chegada e popularização da internet, foi levada a um novo confronto de envolvimento por espectadores mais jovens e pela mudança tecnológica. Os consumidores estão cercados por opções como downloads, streams (transmissões em tempo real) e gravações digitais – o que significa que a nova audiência de massa é, na realidade, uma série de nichos”. (Luchetti, 2008, p. 67)
A internet trouxe consigo a opção pela seleção segmentada de conteúdo, exigindo envolvimento e participação do espectador. Isso fez também com que os hábitos e o comportamento desse espectador evoluíssem, desencadeando uma série de transformações no processo comunicacional e social como um todo.
Mas por que as televisões ou videolocadoras até hoje não haviam criado um mecanismo que contemplasse a oferta de conteúdo segmentado, como aconteceu com a internet? A teoria da calda longa, ou long tail, contribui para esclarecer essa questão, ao explicar as modificações desencadeadas a partir dos novos modelos de distribuição e oferta de conteúdo. Se antes os custos de armazenagem e distribuição eram altos, fazendo com que somente determinados produtos com perfil popular pudessem ser ofertados, hoje é possível disponibilizar ao usuário uma variedade muito maior de opções, devido principalmente à utilização do meio digital como alternativa de distribuição.
Por possuírem grade e espaço limitados, as redes de televisão tendem a priorizar em sua programação um conteúdo que possua potencial para gerar altos níveis de audiência, em detrimento de conteúdos diferenciados. Essa programação, por sua vez, é proveniente de estrutura e produção próprias, como as telenovelas e telejornais, dificultando a participação da produção nacional independente, e contribuindo para a definição de uma programação fechada.
Ainda que se tenha observado, de uns tempos para cá, a presença de conteúdo independente na grade de programação de algumas emissoras, a circulação desse conteúdo ainda é incipiente se comparada à dimensão do espaço de programação disponível.
As videolocadoras, por sua vez, precisam driblar o obstáculo imposto pelo preço de carregamento, que inclui tanto o custo de produção/duplicação dos DVDs, quanto o chamado espaço de gôndola, onde a área ocupada pelo estabelecimento limita a quantidade de produtos que podem ser oferecidos. Tal raciocínio pode ser compreendido com base no exemplo do varejo, onde pequenos supermercados priorizam produtos de maior demanda, enquanto apenas nos hipermercados podem ser encontrados produtos de nicho.
Nesse cenário, podemos apontar algumas tentativas de implementação de modelos alternativos de distribuição audiovisual. Como exemplo, cita-se a Netflix (www.netflix.com), que fez sucesso nos Estados Unidos ao iniciar a entrega de DVDs na casa de seus clientes sem necessariamente estar fixada em um ponto de venda especifico. Isso permitia o oferecimento de um catálogo amplo e diversificado ao consumidor, evitando assim a limitação imposta pelo espaço de gôndola.
Foram a internet e as novas mídias, no entanto, que modificaram massivamente esse mercado, possibilitando a oferta de um amplo catálogo que incluísse tanto produtos de expressiva demanda, quanto os chamados produtos de nicho, ou com demanda específica. Nesse universo, cita-se como exemplo o site da Amazon (www.amazon.com) que, com uma oferta diversificada de livros, filmes e outros produtos, tornou-se referência na mudança de relação entre o público e os produtos ofertados, constituindo-se como um dos pontos de partida para que a internet se transformasse numa nova modalidade de distribuição, na qual oferta abundante e logística são as palavras-chave.
Ao oferecer um catálogo de filmes em formato digital e on-demand, a internet passou a oferecer ao usuário a possibilidade de escolher quando e onde ele desejaria consumir o conteúdo, dentro daquilo que Deuze (2007) chamou de consumo individual. Segundo o autor, na era do Open Media o papel do consumidor e do produtor muitas vezes se confunde diante da produção colaborativa gerada pelo usuário, e disponibilizada em meios como o Wikipédia. Ao mesmo tempo, presencia-se uma forma de consumo cada vez mais individualizado em termos de satisfação de necessidades.
A internet mudou o foco da computação para a comunicação, e culminou na criação de um usuário multimídia, no qual “a via é de mão dupla. O público passa a ser cogestor do processo de criação. Basicamente podemos resumir na seguinte frase: Antes era monólogo, agora é preciso conversar” (Luchetti, 2008, p. 75).
Assim, a principal mudança acarretada com a distribuição on-line está na relação entre a forma como o conteúdo é disponibilizado e as possibilidades de participação do público nesse processo. Tais mudanças foram fundamentais para iniciar o processo de democratização da produção e do acesso cultural.
Não se sabe, nesse processo, se a demanda existente foi criada pelas mudanças tecnológicas e oferta de novos serviços, ou se esse consumidor sempre sonhou com a possibilidade de geração de conteúdo e de sua difusão, com consumo personalizado e liberdade de interação. O fato é que a evolução tecnológica trouxe mudanças irreversíveis ao mercado e aos padrões de consumo audiovisual.
O sucesso do Youtube (www.youtube.com), por exemplo, demonstra um desejo significativo de participação no registro de fatos, na produção de conteúdo documental e de entretenimento e, em especial, na difusão e compartilhamento desse conteúdo. Essa prática só se tornou possível devido à evolução e barateamento dos instrumentos de produção, os quais viabilizaram a produção de vídeos a partir de meios portáteis e economicamente mais acessíveis, como o celular.
Assim, se até bem pouco tempo o cinema era realizado somente por uma elite por meio da disponibilidade de uma quantia considerável de recursos financeiros, considerando os altos custos de equipamento, equipe técnica e processos de finalização, hoje qualquer indivíduo pode se autointitular realizador: basta ter uma câmera ou outro instrumento de captação de imagens para fazê-lo, considerando a internet como um meio alternativo e eficaz para promover a circulação deste conteúdo.
*Trecho do artigo de Sabrina Nudeliman e Daniela Pfeiffer no livro “Cinema e Mercado”, volume III da coleção “Indústria Cinematográfica e Audiovisual Brasileira”, uma coedição do Instituto Iniciativa Cultural e Escrituras Editora.
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