Novos arranjos da economia digital

Novos arranjos da economia digital

 

Por Marcus Vinícius Tavares de Alvarenga e João Carlos Massarolo*

Neste capítulo, desenvolvemos algumas reflexões sobre novos modelos de negócios para a economia do audiovisual, a partir das mudanças que estão ocorrendo no sistema de produção, distribuição e exibição de conteúdo audiovisual.

Num primeiro momento, pretende-se discutir de que modo a cultura  participativa favorece a formação de comunidades na economia em transição, destacando as noções de gratuidade, precificação e pirataria. Nesta perspectiva, o estudo dos processos sinérgicos e as externalidades entre os produtos são importantes para a compreensão da narrativa transmídia, que se caracteriza principalmente pela construção de universos expandidos, não somente de histórias, mas também de ambientes que possibilitem a exploração de contextos específicos. Além disso, pretende-se analisar ferramentas de Marketing e Planejamento Estratégico, orientadas para a discussão das ações que se vislumbram nos mercados que se encontram em fase de estruturação.

Mídias colaborativas

Na era do Broadcast, as ações de marketing e planejamento eram desenvolvidas para enfatizar a relação entre a produção e o consumo, enquanto que o mercado criado pelas mídias colaborativas (MSN Messenger, Orkut, Google Earth e Google Maps, entre outras) envolve a necessidade da criação de novas estratégias, tendo em vista que a convergência midiática inclui, além do consumo, a produção e o compartilhamento, ou seja, não são apenas os produtores convencionais que produzem conteúdo, mas também os consumidores estão aptos a produzir e compartilhar. Dentro dessa nova realidade, estes podem desdobrar os produtos que são oferecidos em diferentes suportes midiáticos e, dessa forma, eles mesmos passam a investigar e criar partes da narrativa.

Certamente, a relação de envolvimento entre consumidor e produtor será uma das interfaces mais importantes para a produção audiovisual e sua lucratividade para os próximos anos. O desafio que se apresenta é pensar num modelo de negócio que desenvolva uma escala produtiva que transfira o foco do produto audiovisual para um mercado promissor como a internet, mas ainda gratuito e sem um modelo próspero de publicidade que permita o conteúdo de graça e rentável. Para Wagner Fontoura (2009, p. 36), o fator crítico consiste em “como remunerar essa nova estrutura, posto que o usuário da web foi acostumado a encontrar conteúdo sem ter que pagar por ele na rede”, motivo pelo qual se faz urgente investigar a relação consumidor/produtor e a estrutura de modelo de negócio que pode se conceber a partir desse princípio.

Pretende-se assim, fazer uso de uma literatura técnica de Economia e Administração para delinear as possíveis conjunturas de modelo de negócio do mercado audiovisual, baseado na relação de oferta e de demanda, que se reconfigura com a mudança de relação entre o consumidor e o produtor de conteúdo audiovisual.

A reconfiguração do mercado de economia digital foi preconizada pelo modelo da Cauda Longa, de Chris Anderson, que afirma que sem as limitações do espaço físico nas prateleiras nem o estrangulamento do sistema de distribuição, a cultura e a economia de nossa época, cada vez mais, avançarão para uma grande quantidade de nichos, aumentando o número de produtos audiovisuais com visibilidade, assim como suas vendas.

Dessa forma, a democratização da produção de conteúdo estrutura-se a partir da redução dos custos de produção e de distribuição, o que permite afirmar com base na teoria econômica, que mais bens são ofertados para uma demanda maior, devido à redução de custo e, consequentemente, do preço de venda.

A existência de uma cultura da abundância de conteúdo audiovisual na internet, em que mais agentes produzem e consomem, tende a fazer dos “especialistas amadores” uma figura central do processo de produção, no qual o consumidor de produtos audiovisuais dispõe do ferramental necessário para criar o seu próprio conteúdo.

Na economia da abundância de informação, a produção audiovisual é redimensionada em suas ações, de forma a reavaliar seu mercado consumidor, ou seja, a economia digital é orientada, em grande parte, pelo poder de barganha dos consumidores e esse fenômeno surge em decorrência da ascensão no mercado das mídias de um maior poder de participação dos consumidores.

Cultura participativa

A emergência da cultura popular no interior da convergência midiática é um dos fenômenos mais significativos dos novos arranjos da economia digital. Na interação de “muitos com muitos” proporcionada pela convergência entre as telecomunicações e as redes sociais, o provedor de conteúdo é interpelado pelo usuário que não se satisfaz mais no papel de consumidor passivo e passa a atuar como porta-voz do produto, participando ativamente dos fóruns de discussão criados pelas comunidades discursivas, seja para defender os interesses do “especialista amador” ou para promover novas demandas.

A democratização da produção de conteúdo e da distribuição faz com que, baseado na teoria econômica, mais bens possam ser ofertados para uma demanda maior, devido à redução de custo e consequentemente do preço de venda. Dessa maneira, a redefinição dos modelos de negócios da indústria do entretenimento audiovisual na economia digital parte do princípio de que os conteúdos de nicho tendem a se tornar mais lucrativos na medida em que os “especialistas amadores” se mobilizam em torno de seus interesses.

Esse novo arranjo tende a desestabilizar o modelo “cabeça curta” da economia tradicional, que consiste na venda por catálogos, fisicalidade dos produtos (prateleiras) e na tirania da localidade, ou seja, trata-se de um modelo dependente dos hits do momento, que utilizam estratégias de marketing para galgar o topo das paradas.

O novo modelo de negócios prosperou em larga escala na internet graças ao poder da inteligência coletiva que deu origem a um fenômeno interessante: o surgimento de novos nichos de mercado, formados por “especialistas amadores” que utilizam suas habilidades para construir uma base de relacionamento com os produtos – filmes, livros, programas de televisão, música e videogames – tendo como objetivo a demonstração de seu domínio sobre a cultura popular.

Na era da cultura de massa, se um fã dedicado de uma série televisiva desejasse exibir seus conhecimentos sobre o programa, não teria muitos meios de fazê-lo, mas agora os “especialistas amadores” podem transmitir sua sabedoria para “dezenas de milhares de receptores ansiosos que tentam desesperadamente alcançar a segunda cidade em Grand Theft Auto ou compreender porque Tony Soprano mandou matar aquele cara na noite passada” (Johnson, 2005, p. 140).

A irrupção desse mundo da mídia, largamente influenciado pelo culto às celebridades, gerado e controlado pelo consumidor, representa uma ruptura com o modelo tradicional de comunicação baseado nos grandes sucessos, propiciando o surgimento de objetos culturais multifacetados onde antes havia apenas modelos preestabelecidos de padrões de consumo.

As formações discursivas praticadas nas redes sociais fazem do ‘especialista amador’ um novo heavy user – grupo de consumidores que consomem grandes quantidades de informações e, mesmo sendo em menor número, detectam padrões e tendências culturais que serão seguidas pelo light user – o consumidor casual e/ou dedicado, cujos hábitos são moldados pelos prazeres proporcionados por uma única mídia ( televisão, internet etc.).

Consumidor/produtor

O heavy user, também conhecido como (VUP): Viewer (espectador), User (usuário), Player (jogador), é o consumidor ávido e devotado que se utiliza de múltiplas entradas no universo transmidiático com o propósito de produzir e também compartilhar suas habilidades de “especialista amador” junto aos demais membros de uma comunidade. As múltiplas entradas no universo em transmidiação exigem do ‘especialista amador’ muita atenção, favorecendo o desenvolvimento de novas capacidades cognitivas e perceptivas, que lhe permitem adotar uma mentalidade de detetive, procurando pistas que o auxiliem na antecipação de soluções para situações diegéticas, dentro de ambientes nos quais novas hipóteses são testadas e/ou revistas, tendo em vista a resolução do problema.

Desse modo, o consumidor ávido e devotado, que na sociedade industrial foi relegado ao papel de consumidor passivo, torna-se, na era da convergência, o detentor do ‘capital social’, constituindo-se num dos principais agentes do mercado, mesmo que o seu talento ou a sua competência não sejam reconhecidos pela indústria do entretenimento ou pela Academia.

Para Pierre Bourdieu o capital social é o “conjunto de recursos atuais e potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e inter-reconhecimento.” (Nogueira & Catani, 1998, p. 67). Os vínculos que mantêm os consumidores unidos entre si surgem em decorrência do reconhecimento das habilidades de cada membro e a duração dessa ligação é determinada pelos interesses que possuem em comum.

Por sua vez, a indústria do entretenimento tem desenvolvido estratégias que visam a desafiar as habilidades dos ‘especialistas amadores’ em seus campos de atuação, num processo contínuo de avaliação do ‘capital social’ dos consumidores ávidos e devotados. As corporações realizam a triagem de talentos dos ‘especialistas amadores’ por meio da complexificação das estruturas narrativas e do tratamento temático.

Produtores e anunciantes direcionam os produtos para seu público-alvo: o “especialista amador”, esperando que suas ações façam as histórias mais significativas fluírem através das múltiplas plataformas de mídia, buscando, desse modo, promover tanto os programas televisivos quanto seus patrocinadores.

O problema é que nem sempre os interesses dos produtores e dos consumidores ávidos e devotados são os mesmos. A tendência é de o consumidor ser mais seletivo, tornando-se mais ativo, interativo e participativo com o entretenimento de que escolheu fazer parte. Os consumidores ávidos e devotados compartilham interesses em comum e, mesmo que estejam geograficamente distantes, a identificação com o mesmo objeto representa um ponto de partida para a formação de novos nichos e tendências discursivas na comunicação entre os indivíduos que fazem parte de uma comunidade.

As formações discursivas que atuam nesse processo são um fenômeno que merece ser abordado, tendo em vista que a participação dos consumidores é estimulada, em grande parte, pela noção de repetição. Para Steven Johnson, a transformação dos videogames “de títulos de fliperama projetados para uma explosão de ação em um ambiente glamouroso até produtos contemplativos que recompensam a paciência e o estudo intenso – fornece o estudo de caso mais dramático da força da repetição” (Johnson, 2005, p.133).

A serialização da produção audiovisual contemporânea desenvolve as habilidades cognitivas que o consumidor ávido e devotado utiliza na releitura de obras marcadas pela hibridização de gêneros e complexificação narrativa, combinado com a autorreflexividade e a subversão de expectativas.

*Trecho do artigo de Marcus Vinícius Tavares de Alvarenga e João Carlos Massarolo no livro “Cinema e Mercado”, volume III da coleção “Indústria Cinematográfica e Audiovisual Brasileira”, uma coedição do Instituto Iniciativa Cultural e Escrituras Editora.

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