TV Pública ou Estatal?

TV Pública ou Estatal?

Por Alessandra Meleiro e José Márcio Mendonça

Desde o 1º. Fórum Nacional de Televisão Pública- que ocorreu em maio de 2007 e resultou na “Carta de Brasília” – a rede pública de televisão no país começou a ganhar contornos. Naquele momento, o presidente Lula entregou à Secretaria de Comunicação Social e ao recém empossado ministro Franklin Martins a missão de instalar a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – operadora de emissoras de TV e rádio e de uma plataforma web. Criada em outubro de 2007, a EBC tem a missão de implantar e gerir o sistema público de comunicação previsto pelo artigo 223 da Constituição Federal.

Dezessete meses após o encontro, as entidades que representam as TVs públicas reuniram-se com o ministro das Comunicações, Hélio Costa, buscando apoio para a realização do II Fórum Nacional de TVs Públicas. O objetivo é debater questões que não foram esclarecidas na primeira edição do evento, como a conceituação de televisão estatal e de televisão pública e a regulamentação das emissoras públicas – já que falta um aparato jurídico para este campo das comunicações. 

O ministro Hélio Costa mostrou-se simpático ao projeto de dar continuidade às discussões sobre a radiodifusão pública, o que deve ocorrer no primeiro semestre de 2009.

PROGRAMAÇÃO

O presidente Lula, de quem partiu a idéia de criação da televisão pública no país, entende esses novos canais como os veículos capazes de pôr no ar aquilo que as outras televisões não põem, as notícias positivas que não são dadas, os debates sobre grandes temas nacionais que não são realizados, os programas educativos que ficam confinados às emissoras educativas.

No entanto, há dez meses após sua estréia, a TV Brasil depara-se com o desafio de consolidar-se como emissora pública e de afastar definitivamente os receios que a cercam. Com orçamento limitado e programação baseada quase exclusivamente na grade herdada da extinta TVE, a direção da TV Brasil esforça-se para produzir a única novidade até o momento – o telejornal “Repórter Brasil”, com uma estrutura estabelecida apenas nas cidades de Brasília e Rio de Janeiro.

Fazer uma aposta quase que exclusivamente num jornalismo de qualidade e diferenciado pode ser um equívoco. As TVs privadas, depois da competição trazida pelas emissoras a cabo, apesar das críticas e de naturais falhas, já começam a ocupar este espaço. E como os recursos para a TV pública são escassos, outras áreas acabarão por ser menos contempladas.

MEDIDA PROVISÓRIA 398

A criação da TV Pública e de outros canais de comunicação sujeitos ao controle social é uma antiga aspiração da sociedade brasileira, que ganhou expressão na Assembléia Constituinte de 1988.

No entanto, no projeto da nova TV patrocinada pelo governo Lula há uma série de distorções, tanto nos pressupostos que lhe deu origem, quanto no meio escolhido para a sua implantação. A pressa com que o processo foi conduzido foi tão evidente que o principal interessado – o cidadão – como sempre não sentou à mesa de discussões. Pelo menos não como protagonista. A iniciativa atropelou o escrutínio do Congresso e já está no ar desde 2 de dezembro de 2007, por força de uma medida provisória, cujo cerne foi aprovado pela Câmara.

As MPs, por terem prazo exíguo de andamento na Câmara e no Senado, sempre tramitam de maneira precipitada, sem as necessárias reflexões, sem debates mais aprofundados. E, ao final, são aprovadas com poucas modificações com relação ao texto original.

Defensor de uma TV pública no Brasil, na ocasião o senador Pedro Simon (PMDB-RS) classificou como “golpe” a decisão do governo de votar o projeto de lei de conversão (PLV 2/08) à medida provisória (MP 398/07) da TV Brasil depois das 23h de uma terça-feira magra – e sem a aceitação de emendas.

Ou seja, o que saiu em matéria de televisão pública da mesa de trabalho dos grupos escolhidos pelo governo é o que ficou valendo, com alterações cosméticas. Do modo como o processo foi conduzido, a sociedade foi brindada com uma televisão pública sem saber o que isso significa, o que é na vida real, e se lhe interessa pagar por tal oferta.

É baixa a credibilidade de uma empreitada que nasceu de uma medida provisória, e que deixa intocada a estrutura das comunicações estatais no país, moldada pelo aparelhamento e pelo empreguismo – e sem relevância em termos de audiência. Prova disso é que em maio de 2008 uma pesquisa CNT/Sensus revelou que 62% dos entrevistados não sabem da existência da nova TV pública.

PÚBLICA OU ESTATAL?

Grosso modo, a televisão comercial, de massa, estaria mais voltada para o entretenimento e um pouco de jornalismo, sustentada por inserções comerciais; a estatal, sustentada pelo governo, estaria mais voltada para a divulgação dos feitos oficiais, do governo de plantão, com alguma prestação de serviços de utilidade pública e programas educacionais; e a pública, eqüidistante das duas, sustentada pela sociedade, estaria voltada para os interesses dos cidadãos em sua dimensão mais humana. Nas outras duas, ele seria o consumidor, o eleitor, o telespectador apenas.

A rigor, merecem maiores reflexões os conceitos de televisão pública, estatal e comercial, visto que todos se originam de concessões e outorgas “públicas”.

Os sistemas estatal/governamental e privado/comercial são velhos conhecidos nossos. Um o governo paga, outro os anunciantes sustentam. Individualmente, têm qualidades e defeitos. Falta conhecer a televisão pública e quais seriam suas apregoadas vantagens. Por estar livre dos compromissos dos dois outros modelos, tanto do ponto de vista do financiamento quanto do de gerência, a televisão pública, segundo seus defensores, estaria também livre para perseguir uma televisão de qualidade, não voltada exclusivamente para o entretenimento ou para defender os interesses do governante (e financiador) de turno. Poderia inovar, experimentar, criar sem limites.

Poderia dar voz àqueles que não têm voz na televisão comercial e àqueles que aos governantes só servem na urna. Todos os tipos de diversidades culturais, étnicas, de gênero teriam nela uma fonte de expressão.

Ela funcionaria, acredita-se, até mesmo como um êmulo para as televisões comerciais, forçadas que seriam a buscar novos formatos, a encontrar novos temas para seus programas, a optar por conteúdos de melhor qualidade, a partir da concorrência trazida pela televisão pública. Cita-se, como exemplo, o caso do programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum, da TV Cultura de São Paulo. As outras emissoras teriam sido forçadas a melhorar a programação para as crianças porque perderam audiência para a televisão do governo paulista.

Portanto, para estar eqüidistante dos binômios mercado/audiência e governo/propaganda oficial, a televisão pública teria de ser totalmente independente desses entes, em três vertentes: independente financeiramente, independente gerencialmente e, por fim, independente editorialmente.

Se a TV pública não tiver fontes permanentes de recursos, intocáveis, não será pública, será estatal. Se não puder tomar decisões de contratar, demitir, que salários pagar e tudo mais que caracteriza o gerenciamento de uma empresa, não será pública, será estatal. Se não for editorialmente independente, não puder decidir o que veicular, como tratar os assuntos, seja no jornalismo, seja em outro tipo de programação, não será pública, será estatal. Estará sujeita aos humores e desejos do seu financiador (com o dinheiro público, óbvio) governamental.

Orlando Senna, logo após sua exoneração do cargo de diretor-geral da Empresa Brasil de Comunicação (EBC, controladora da TV Brasil) , divulgou carta pública alertando os representantes da sociedade civil para que intervenham no sentido de tornar a emissora “blindada contra os poderes e interesses governamentais e econômicos”.

Esses são requisitos básicos, condicionantes inegociáveis. A televisão pública deveria funcionar no Brasil como deveriam funcionar, idealmente, as agências reguladoras em alguns setores da economia, como a Anatel, a Aneel e a Ancine – como órgãos de Estado, não de governo. As agruras pelas quais elas passam – cortes de recursos, interferências ministeriais – mostram que no Brasil a prática é outra. E o exemplo da Anac, com suas indicações políticas, que deram no que deram, não recomenda entusiasmos nesse campo.

Detalhamos abaixo estas vertentes:

1.FINANCIAMENTO

Carta de brasília
A TV Pública deve ser independente e autônoma em relação a governos e ao mercado, devendo seu financiamento ter origem em fontes múltiplas, com a participação significativa de orçamentos públicos e de fundos não-contingenciáveis

Os mecanismos de financiamento da nova emissora é um dos pontos mais controversos desde sua formação. Se a verba da emissora vier apenas do orçamento da União, não haverá a independência necessária – a TV pública deveria ter sua gestão assegurada através de verbas públicas ou de setores sociais.

A TV Brasil simplesmente ajuda a inflar o número de rádios e TVs educativas que, na primeira gestão petista, subiu 26%. Ela já nasce contando com 2.000 funcionários, reunião do quadro da Radiobrás com o da TVE do Rio de Janeiro.

De onde virão os recursos para financiar a rede? Dos atuais impostos, de um novo imposto, de uma contribuição especial dos usuários de televisão? Pelas informações disponíveis, do próprio ministro Franklin Martins, a operação da rede pública custará R$ 500 milhões anualmente (valores de 2008). Fala-se em financiamento via serviços prestados, patrocínio institucional, uso das leis de incentivo. Mas esse nem sempre é um recurso certo. Para ter uma qualidade constante, a TV pública deverá ter recursos certos.

Aqui cabe um paralelo. A BBC traz um modelo interessante de financiamento: seus recursos provêm basicamente do pagamento, por todos os britânicos que possuem televisão, de uma taxa de 136 libras por ano, dinheiro que não pode ser apropriado pelo governo, nem contingenciado, nem congelado. O orçamento da BBC em 2007 passou dos 3 bilhões de libras.

Afinal, por que o contribuinte será obrigado a arcar com um canal de TV tão caro e tão redundante em relação a seus antecessores? O II Fórum Nacional de TVs Públicas deveria procurar explicações plausíveis para a existência deste novo canal no Brasil.

2.  CONSELHO CURADOR

A instituição de um Conselho Curador composto por representantes da sociedade civil – da sociedade civil próxima ao petismo – não nos dá garantia alguma de que a nova TV vai se livrar do chapa-branquismo. Isto porque os 15 conselheiros da TV – assim como o diretor-presidente e o diretor-geral – foram escolhidos e nomeados pelo presidente, e não por entidades da sociedade civil.

Novamente, a BBC pode ser citada como um tipo ideal: existe uma tradição na emissora em que os conselhos públicos, formados por pessoas reconhecidamente não partidárias, servem para impedir que os produtores e rádio e televisão sofram interferências políticas e comerciais. Seu conselho é indicado pela sociedade, representa de fato a sociedade, e não grupos restritos de pressão e interesse. São eleitos pelo parlamento, têm mandatos, não podem ser trocados livremente ao bel-prazer de um primeiro-ministro insatisfeito. No episódio envolvendo reportagem da BBC sobre a participação da Grã-Bretanha na Guerra do Iraque, Tony Blair pressionou para afastar pessoas do jornalismo da emissora e não conseguiu. A BBC se pôs contra, por exemplo, a Guerra das Malvinas e do Iraque e nada abalou sua vida.

3. MODELOS

Há exemplos no mundo de televisões públicas, as nossas (TV cultura paulista, e as educativas estaduais e federais), não o são. Mesmo a TV Cultura, que mais se aproxima do modelo no Brasil, sofre influências indiretas constantes do grande patrocinador. E sua quase permanente penúria financeira a torna dependente, sim, do governo paulista, em maior ou menor grau, dependendo do inquilino de ocasião no Palácio dos Bandeirantes.

Não há naturalmente nenhum modelo pronto e acabado para a realização de um projeto dessa ordem. Reproduzir modelos externos bem-sucedidos, como o da BBC (British Broadcasting Corporation), é desaconselhável. Há o modelo norte-americano, mais recente, também tido como exemplar, mas muito longe do alcance e prestígio da BBC. Quem já assistiu à RAI (Itália), TVE (Espanha) e a RTP (Portuguesa) tem, às vezes, a impressão de estar sintonizado em alguns dos programas menos recomendáveis de algumas redes privadas brasileiras.

Será necessário pesquisar um caminho próprio, e não é impossível que do mero processo de busca surjam decisões cruciais – como a de relativizar (sem, no entanto, desprezar) a importância do fator audiência; ou de se perceber a real importância da independência total da TV pública em relação ao poder político.

Por fim, a TV Brasil certamente ainda não é a rede nacional pública de televisão que muitos sonhamos. Embora não tenha sido discutida a contento, talvez seja um importante passo no sentido de provocar o necessário debate sobre o papel dos meios de comunicação no Brasil – procurando “alcançar o seu objetivo de empresa pública de comunicação moderna, democrática e financeiramente saudável”, com disse Senna em sua carta pública de despedida.

Artigo originalmente publicado no jornal Gazeta Mercantil, Fim de Semana, São Paulo, 30/01/09, pp. 6. Clique aqui para vê-lo na íntegra.